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6/18/2024 0 Comentários Existe “macumba” na Europa? Sobre as experiências de ser um “macumbeiro abroad”Maria Cecília Cerqueira Graduanda em Ciências Sociais pela UFRJ Pesquisadora do URBANO “A senhora achou que não fosse encontrar a gente aqui, não é? Ainda bem que hoje a senhora viu que estava errada.”. Essa foi a frase dita pelo Caboclo Ubirajara enquanto benzia minha cabeça com sua água sagrada na minha primeira ida a um terreiro de Umbanda na Europa, mais precisamente, em Bruxelas, na Bélgica. Desde que soube da minha ida para um intercâmbio de sete meses no exato país, uma das grandes preocupações era como ficaria as minhas obrigações religiosas longe do Brasil. Onde se comprariam as velas? Onde se encontrariam as ervas necessárias para os banhos de descarrego? Em quais esquinas seria possível fazer um despacho? De fato. Não achei que fosse encontrar terreiros e entidades em um continente que tanto batalhou para erradicar qualquer manifestação de religiões de matriz africana ao longo dos séculos. Por que, afinal de contas... existe “macumba” na Europa? Quando o pesquisador Lucas Marques desenvolve a ideia de “linhas de forças” de Bastide para se referir ao sistema de conexão entre pessoas, entidades, orixás e natureza (MARQUES, 2018, pp. 224), entendemos que apesar da importância territorial para estas interligações e manifestações, o sagrado não se limita à artificiliadidade das fronteiras humanas. Como disse Seu Ubirajara, eu estava errada ao pensar que dentro do continente europeu não se encontraria “macumba”, não se “faria macumba” ou não haveria como alguém “virar no santo”. Se a energia desempenhada por orixás e entidades, como exus e caboclos, estão presentes na natureza, não há lógica em pensar na sua limitação espacial e geográfica e não num agenciamento constante, irrestrito ao espaço-tempo humano. Um terreiro, para além de desempenhar um papel espiritual, também é um centro de sociabilidade, do qual trocas e interações pessoais também são realizadas com outros própositos que não apenas os voltados para o desenvolvimento religioso, como é trabalhado pela pesquisadora Daniela Ferreira Evangelista (2015). Dentro do terreiro de Umbanda aqui em Bruxelas, esta percepção é ainda reinterada quando analisamos o senso de comunidade brasileira formada em seu interior, onde os frequentadores podem não apenas se conectar com a sacralidade, mas também com a sua fonte primordial de cultura, ouvindo as pessoas falarem português, e até mesmo comendo os salgadinhos da cantina durante os intervalos da gira. Mas fato é: se uma religião precisa também de materialidade, como trabalhado por diversos estudos na Antropologia da Religião, ser “macumbeiro” em outro continente não é nada fácil. Apesar de manifestações espirituais não se restringirem às delimitações geográficas, a materialidade necessária para se fazer trabalhos, oferendas e despachos não são encontradas com tanta facilidade, seja em relação às ervas, roupas, velas, comidas ou alguidares. Porém, a importância desses recursos como instrumentos de conexão entre sagrado e mundo material, faz com que a adaptação seja necessária e não a exclusão total da ação. As velas nem sempre são as ideais, a feijoada para Preto Velho não necessariamente será “completa”, os despachos muito provavelmente não ocorrerão nas esquinas, devido ao risco de multas. Mas nada disso é motivo real para deixar de realizar e cumprir as obrigações da “macumba”. Morar em outro país sendo um crente de religiões de matriz afriacana é criar estratégias para burlar a realidade da escassez de produtos utilizados no ethos umbandista e candoblecista, e cada país, cidade e região vão oferecer estes recursos em maiores ou menores quantidades, dependendo de fatores como o próprio tamanho da comunidade brasileira naquele lugar. Como visto, por exemplo, pelas ruas da cidade do Porto, em Portugal, que apesar da forte composição do catolicismo em seu espaço urbano, podemos encontrar lojas de artigos religiosos e produtos naturais comercializando imagens de entidades brasileiras da Umbanda e os orixás do Candomblé, além de centros espíritas e cartazes divulgando limpezas e ajudas espirituais. Ser um “macumbeiro abroad” é constantemente criar estratégias para cultivar a
ancestralidade, as bases religiosas e cumprir as obrigações destinadas a cada indivíduo em um outro lugar que não o país de origem. Engana-se quem acredita que manifestações espirituais possuem fronteiras estabelecidas no mundo dos homens, pois tanto as entidades e orixás, quanto estes próprios homens, constantemente se reinventam e formulam novas estratégias para continuar exercendo e colocando em prática a religião. Referências: EVANGELISTA, Daniele Ferreira. Fundando um axé: reflexões sobre o processo de construção de um terreiro de candomblé. Religião & Sociedade, v. 35, p. 63-85, 2015. MARQUES, Lucas. Fazendo orixás: sobre o modo de existência das coisas no candomblé. Religião & Sociedade, v. 38, p. 221-243, 2018.
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No próximo dia 25/06, terça-feira, faremos uma roda de conversa com os autores do livro “E quando a limonada antropológica azeda?”. Os organizadores Rodrigo Toniol (UFRJ) e Soraya Fleischer (UnB) receberão os autores dos capítulos deste livro que reúne uma dezena de histórias de pesquisas antropológicas que deram errado. Esperamos todos vocês no salão da Academia Brasileira de Ciências (ABC) às 10h. E no mesmo dia, às 17h , na Casa 11 Livraria para um lançamento festivo com os autores.
Na tarde de ontem (10/06/2024), ocorreu no IFCS o seminário “Desastres ambientais e gestação de futuro: entre religião e ciências”. Nele discutimos conhecemos iniciativas que transformam ciência e religião em aliadas no combate ao negacionismo. O seminário também tratou de imaginar possíveis futuros frente aos desastres ambientais e fins de mundo. Participaram da atividade
Mesa 1: O Fim do Mundo e o Discurso Religioso Kenner Terra (Pastor da Igreja Batista Betênia) Agnes Alencar (Historiadora e Teóloga) Mesa 2: O Negacionismo não é só questão de ciência Tatiana Roque (Matemática, Filósofa e Professora da UFRJ) Fábio Scarano (Diretor do Museu do Amanhã e Professor da UFRJ) Vitor Matos (Mestre em Políticas Públicas e Direitos Humanos) Mesa 3: Possíveis Saídas e Futuros Rodrigo Toniol (Antropólogo e Professor do IFCS/UFRJ) Sharah Luciano (Mestre em Educação e ativista da iniciativa Fé no Clima) Carlos Vicente (Coordenador da IRI-Brasil - Iniciativa Inter-Religiosa pelas Florestas Tropicais da ONU-PNUMA) 6/5/2024 0 Comentários Sabrina Del SartoConheça Nossos Pesquisadores: Sabrina Del Sarto
Com muita felicidade, anunciamos a mais nova pesquisadora do Passagens, contemplada com uma bolsa de Pós-Doutorado no Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ/IFCS pelo CNPq. Pós-doutoranda no PPGSA-UFRJ. Sabrina é doutora em Antropologia Social - PPGAS UFSC. Professora na Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul. Foi Pesquisadora Visitante no Departamento de Antropologia da Universidade da Califórnia, San Diego/EUA, com financiamento da Fundação Fulbright (2022-2023). Mestra em Antropologia Social - UFSC. Licenciada em Sociologia e Bacharela em Ciências Sociais. Pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre Saúde e Saberes Indígenas do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Saúde/Saúde Mental. Do Grupo de Estudos Enfoques Antropológicos. E também Pesquisadora vinculada ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Brasil Plural (INCT). Sabrina, tem trabalhado desde 2016, com etnografias de Hospitais Psiquiátricos, buscando compreender a vida cotidiana de sujeitos institucionalizados nesses locais, bem como a subsistência de formas particulares de viver e experimentar a institucionalização psiquiátrica permanente. Seja muito bem-vinda 💐 5/24/2024 0 Comentários Pé de Passagens e roteiro afroNa segunda-feira, a equipe do Passagens saiu às ruas para conduzir uma turma da Escola de Letramento Racial da Casa Preta, projeto do @redesdamare, em uma caminhada pela cidade. O tema, desta vez, foram as presenças e ausências das religiões afro-brasileiras entre as praças, ruelas e becos que percorremos durante a tarde. Começamos nosso circuito na I. de Nossa Senhora da Lampadosa, na Av. Passos. Lá, fomos recebidos pelo Maurício, provedor da Venerável Confraria de Nossa Senhora da Lampadosa, que nos conduziu entusiasticamente através dos altares, do velário e do cemitério da construção do século XVIII. Em seguida, na I. de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos, na R. Uruguaiana, discutimos a história do templo erguido por alforriados e escravizados no século XVIII e o estabelecimento, na década de 60, do Museu do Negro no seu coração.
Depois, partimos para o Beco do Rosário, situado no flanco da I. de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos. Em meio ao fluxo vigoroso de transeuntes e veículos, recuperamos o nome de batismo do local, R. da Viela, e chamamos atenção para as barracas para consultas e venda de ervas que enriquecem suas curvas. na R. do Ouvidor, retornamos à Machado de Assis. Em um conto de 1873, o escritor dedicou algumas linhas à célebre rua de vitrines reluzentes: “A Rua do Ouvidor resume o Rio de Janeiro. [...]. Uma cidade é um corpo de pedra com um rosto. O rosto da cidade fluminense é esta rua, rosto eloquente que exprime todos os sentimentos e todas as ideias…”. Por fim, nosso circuito chegou ao fim aos pés da estátua de José Bonifácio. Antes uma lagoa, o Largo de São Francisco ganhou forma em 1742 para abrigar uma catedral que nunca foi construída. Agradecemos aos alunos pela escuta interessada e ao Rodrigo e à Millena, da equipe da Casa Preta, pela parceria. Esperamos vê-los novamente em breve! Fonte: “Tempo de crise”, por Machado de Assis. Publicado originalmente no Jornal das Famílias, abril de 1873. Ouça aqui!
https://rss.com/podcasts/tecnografias/1450578/ ou https://open.spotify.com/episode/3EcIgZxR2KWbECVe2d3Klt?si=c2ba273adfb94330 Tecnografias #4 "E quando a limonada antropológica azeda?" com Rodrigo TONIOL (UFRJ) e Soraya FLEISCHER (Universidade de Brasília) Neste episódio, Rodrigo Toniol e Soraya Fleischer falam com o antropólogo Gonçalo D. Santos sobre o livro E quando a limonada antropológica azeda? (Editora Zouk, 2023). A ideia deste livro surgiu durante o período de isolamento social decorrente da pandemia COVID-19. Os constrangimentos impostos pelo confinamento levaram a uma reflexão aprofundada sobre os limites do método etnográfico. O livro abre com uma introdução de Toniol e Fleischer e um prefácio de Karina Kuschnir, a que se seguem oito capítulos escritos por diversos autores com histórias de experiências fracassadas de trabalho de campo. O fracasso é uma parte importante da investigação etnográfica, mas não há muito espaço dentro da antropologia para refletir sobre aqueles momentos em que a “limonada antropológica azeda”. O que acontece quando se começa a partilhar experiências destes momentos de azedume? De que forma esta preocupação com o fracasso está ligada às crescentes incertezas e vulnerabilidades do mundo contemporâneo? Será que a metodologia etnográfica de longa duração tem os seus dias contados? O que mudou com a pandemia? Autor e Autora em Destaque Rodrigo Toniol é professor de antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e foi presidente da Associação de Ciências Sociais da Religião da América Latina. Pesquisador do CNPq. Membro da Academia Brasileira de Ciências. Coordena o grupo Passagens. As suas pesquisas privilegiam questões relacionadas com corpo, saúde, ciência e religião. Entre os seus livros, destacam-se On the Nature Trail: Converting the Rural Into the Ecological Through a State Tourism Policy (Nova Science Publishers, 2015, com Carlos Steil), Do Espírito na Saúde (Ed. LiberArs, 2018) e Espiritualidade Incorporada (Ed. Zouk, 2022). Soraya Fleischer é professora de antropologia da Universidade de Brasília e é uma figura pioneira da antropologia da saúde no Brasil. Trabalha sobre questões relacionadas com a saúde, o adoecimento e o sofrimento. Entre os seus muitos livros destacam-se: Descontrolada: uma etnografia dos problemas de pressão (2018) e Parteiras, buchudas e aperreios: Uma etnografia do atendimento obstétrico não oficial em Melgaço, Pará (2011). É bastante ativa como autora, divulgadora científica e podcaster. Faz parte da CASCA – Coletivo de Antropologia e Saúde Coletiva. Livro em Destaque: Rodrigo Toniol e Soraya Fleischer (orgs) 2023. E quando a limonada antropológica azeda? Porto Alegre: Editora Zouk ISBN: 9786557781227 Entrevistador Gonçalo D. Santos é professor de antropologia social-cultural na Universidade de Coimbra. É também investigador integrado no CIAS – Centro de Investigação em Antropologia e Saúde, Universidade de Coimbra, onde coordena o Grupo de Investigação “Tecnociência, Sociedade e Ambiente”. É uma figura pioneira da antropologia da China em Portugal. Entre os seus livros destacam-se Chinese Village Life Today (Univ. of Washington Press, 2021) e (como co-editor) Transforming Patriarchy (Univ. of Washington Press, 2017). É o fundador e o diretor da Rede de Pesquisa Internacional Sci-Tech Asia. Luísa Reis-Castro Tradução: João Bardy Mosquito: o "animal mais perigoso do mundo", o "predador mais mortal do ser humano". Esse inseto é frequentemente considerado o principal alvo de tecnologias de edição genética que visam eliminar aqueles que são indesejados. Mosquitos são geralmente apresentados como o inimigo número um da humanidade, uma praga odiada mundialmente: o mais ‘matável’ de todos os seres.* Em 2019, participei de um simpósio multidisciplinar no Centro Rachel Carson em Munique, Mosquitopia? O lugar das pragas em um mundo saudável. Os organizadores do evento, Marcus Hall e Dan Tamir, nos levaram a refletir sobre como, onde, o que e se os mosquitos devem ser controlados ou até mesmo erradicados. Este texto é baseado em minha apresentação no simpósio Mosquitopia: uma reflexão sobre qual é, afinal, o lugar dos mosquitos em um mundo (humano?) saudável. Há muitos caminhos que podem ser seguidos para tentar abordar esse assunto (como, de fato, a diversidade de apresentações no evento mostrou). Proponho que primeiro questionemos e desestabilizemos a categorização geral e amorfa de “os mosquitos”. Para ilustrar a multiplicidade do mosquito, poderíamos apontar para as várias espécies dentro da categoria, criaturas que povoam diversos ecossistemas em todo o mundo - e das quais apenas uma pequena fração pode transmitir patógenos nocivos. No entanto, optei por me concentrar em apenas uma espécie em particular: o Aedes aegypti, o infame vetor de vírus, dentre os quais Zika, dengue, chikungunya e febre amarela (urbana). Aqui, coloco discussões contemporâneas sobre arboviroses e, em particular, uma solução proposta para implantar mosquitos modificados dentro da já notável genealogia de preocupação com mosquitos na política brasileira. Ao focar em apenas uma espécie, mostro como o A. aegypti foi percebido e combatido de várias maneiras, argumentando a importância de se considerar como esses insetos são enquadrados, e por quem. Além disso, apresento como esses diferentes entendimentos sobre os mosquitos moldam as condições históricas e sociais dos esforços para controlar esses insetos e os patógenos que eles podem transmitir. Como os organizadores do simpósio nos lembraram, a mudança climática está expandindo a disseminação geográfica de insetos como o A. aegypti, dando início a uma nova era de mosquitos em certas partes do mundo. Entretanto, para as pessoas que vivem em regiões mais quentes do planeta, esses insetos que zumbem e picam são uma questão há muito tempo. Como parte de meu projeto de colaboração com o historiador Gabriel Lopes, examinamos como o A. aegypti teve uma trajetória histórica de mais de cem anos no Brasil. Esse mosquito está emaranhado nas histórias violentas da escravidão e do colonialismo que constituem o país. Historiadoras ambientais descreveram como o A. aegypti provavelmente chegou às terras que hoje são chamadas de Brasil nos mesmos navios que cruzaram o Atlântico trazendo à força pessoas escravizadas e levando embora os recursos naturais expropriados. No entanto, foi somente no início do século XX, depois que os pesquisadores estabeleceram o mosquito como o vetor da febre amarela, que o inseto se tornou alvo de campanhas de saúde pública. Durante as primeiras décadas do século XX, as elites médicas e políticas (brancas) no Brasil exigiram o tratamento e a prevenção de doenças como um passo fundamental para superar o "atraso" do país e como um meio de "modernizar" a nação (Löwy 2005). Esse plano teve como base narrativas de saúde pública e científicas que afirmavam que o meio ambiente poderia influenciar a constituição moral e física de seus cidadãos. Assim, o controle de doenças como a febre amarela poderia "civilizar" ou "melhorar" a população do país - um projeto que a historiadora da ciência Nancy Leys Stepan (1991) definiu como "eugênia branda", a ideia de que a raça poderia ser "melhorada" por meio da transformação social e ambiental. Além disso, alguns políticos e autoridades de saúde pública também viam o controle da febre amarela como fundamental para a implementação de políticas racistas de "branqueamento" que promoviam a imigração de europeus (brancos) para o Brasil (consulte também: Nascimento, 1989), já que os novos imigrantes/colonos eram considerados particularmente suscetíveis ao vírus. Na década de 1980, o A. aegypti voltou a ser alvo de campanhas de saúde pública, dessa vez por seu papel na transmissão do vírus da dengue. O mosquito, que havia sido eliminado do Brasil na década de 1950, havia retornado ao país durante os anos de ditadura: o governo militar, que governou o Brasil de 1964 a 1985, havia ignorado os relatos do retorno do mosquito, desacreditando o cientista Habib Fraiha, que deu o alarme. A chegada do vírus da dengue tornou perceptível como o A. aegypti já estava presente em cidades de todo o país. Com a ampla disseminação do mosquito, os casos de dengue aumentaram rapidamente. As pessoas afetadas pela doença, em especial moradores de bairros de baixa renda da periferia do Rio de Janeiro, protestaram contra os surtos, que viam como resultado do descaso histórico do governo com seu bem-estar e, especialmente, com suas condições sanitárias e de saúde. Essas manifestações ocorreram durante o processo de "redemocratização", com manifestantes exigindo uma compreensão mais ampla da saúde e do acesso à saúde como um direito assegurado pelo Estado (Pires-Alves, Paiva e Lima 2018). Essas ideias, incorporadas nos protestos contra o surto de dengue, se tornariam parte de um debate nacional sobre saúde e da criação do Sistema Único de Saúde (SUS) de 1988, o sistema nacional de saúde público e universal. Foto em preto e branco de manifestantes, alguns estão segurando cartazes e, mais notavelmente, um deles tem uma imagem de mosquito. Fonte: "Multidão para Dutra e pede estado de calamidade na Baixada" , Rio de Janeiro, 28 de maio de 1986, Fluminense. [Mais uma vez, agradeço a Gabriel Lopes por esta imagem.] A disseminação contínua do vírus e a frequência consistente dos surtos de dengue no Brasil levaram as pessoas a se referirem, em campanhas e na mídia, ao A. aegypti, anteriormente conhecido como "mosquito da febre amarela", como o "mosquito da dengue". O inseto e o vírus da dengue haviam se tornado personagens comuns das e nas paisagens urbanas brasileiras. Apesar das políticas e estratégias de controle do A. aegypti, o mosquito continuou a se proliferar nas cidades, transmitindo o vírus da dengue e, depois de 2014, o vírus chikungunya. Os surtos dessas doenças se tornaram um problema praticamente esperado da saúde pública urbana no país. No final de 2015 e início de 2016, o mosquito voltou a ganhar notoriedade por ser o vetor de um patógeno diferente: o Zika. O vírus foi associado a problemas congênitos em fetos e recém-nascidos, principalmente a microcefalia. Os efeitos somáticos do vírus Zika e a recomendação para que "as mulheres adiem a gravidez" durante a epidemia trouxeram à tona debates sobre justiça reprodutiva no Brasil. O aborto é crime no país, exceto em casos de estupro, risco de vida para a mãe e fetos anencéfalos. Apesar disso, pessoas com condições financeiras podem pagar por um procedimento seguro do ponto de vista médico, mesmo que feitos clandestinamente, e raramente são processadas. O Zika foi mobilizado tanto por feministas quanto por grupos conservadores: Os primeiros defenderam a necessidade de descriminalizar/legalizar o aborto como uma questão de justiça social, uma vez que as mulheres pobres, em sua maioria negras e pardas, foram prejudicadas de forma desigual tanto pela ilegalidade do procedimento quanto pelos impactos do Zika; enquanto os últimos defenderam a necessidade de dificultar ainda mais o acesso ao aborto, uma vez que ele poderia ser usado como uma "ferramenta eugênica" contra crianças com deficiência, como aquelas com Síndrome Congênita Associada à Infecção pelo Vírus Zika (Lira, Meira e Campos 2018). Além disso, a epidemia de Zika ocorreu em um momento de intensa polarização política no país, intensificada pelo golpe/impeachment da Presidente Dilma Rousseff. Enquanto ainda estava no poder, o governo Dilma tentou usar a "luta contra o mosquito" para unir o país contra um "inimigo" comum e para se mostrar como um governo determinado e combativo; no entanto, a oposição de Dilma usou a epidemia e as deficiências mais amplas do sistema de saúde pública brasileiro como prova da incompetência gerencial do Estado. Esses três momentos históricos demonstram como o mesmo mosquito, o A. aegypti, foi considerado uma praga por diferentes motivos: para as elites brasileiras, como um obstáculo aos esforços de "civilização" e "branqueamento"; para ativistas sociais, como um reforço das desigualdades sociais e a revelação do descaso governamental; e para cidadãos politicamente polarizados, como um agravamento das divisões sobre os direitos reprodutivos e o papel do Estado. Os diferentes vírus que foram transmitidos pelas picadas do mosquito, bem como o contexto político em que essas picadas ocorreram, moldaram o tipo de vetor que o A. aegypti se tornou. Esses diferentes entendimentos sobre o mosquito definiram as prioridades do controle epidemiológico assim como a percepção pública dos esforços para combater as doenças por meio do controle do mosquito. Em outras palavras, o que foi feito para combater e eliminar o A. aegypti variou também devido ao imaginário do que seria um "mundo saudável". Além de um vetor O mosquito pode, portanto, ser um tipo diferente de vetor a depender do patógeno que carrega e das prioridades existentes. Em certas situações o A. aegypti pode nem mesmo ser considerado uma praga. A pesquisa etnográfica de Túllio da Silva Maia (2020) descreveu como, para sertanejos, mosquitos como o A. aegypti não "causam doenças". Esses sertanejos atribuíram doenças como a Zika como sendo transmitidas por mosquitos apenas nas cidades, com sua sujeira, lixo e esgoto. Fora do contexto urbano, as picadas de mosquito não eram vistas como veículo de vírus patogênicos, mas sim como parte da luta do inseto para sobreviver ao ambiente árduo do sertão, da mesma forma que os sertanejos e outros habitantes também lutam continuamente para sobreviver. Em minha pesquisa de doutorado, na qual examinei novas tecnologias para tratar de doenças transmitidas por mosquitos no Brasil, realizei trabalho de campo com um grupo que libera espécimes modificados do A. aegypti em toda a cidade do Rio de Janeiro. Esse grupo de saúde global, o World Mosquito Program (WMP), é um dos diferentes projetos em todo o mundo que agora tenta usar os próprios mosquitos para controlar os patógenos que eles podem transmitir.** Implementado no Brasil por pesquisadores da Fiocruz, o projeto libera A. aegypti infectado com a bactéria Wolbachia, um micróbio que pode inibir a capacidade do inseto de transmitir patógenos. Espera-se que os mosquitos infectados com Wolbachia se acasalem com os chamados "selvagens" e transmitam a bactéria para a próxima geração. Em outras palavras, o objetivo é transformar os mosquitos de vetores em não vetores; ou, como disse um dos meus interlocutores, criar uma mudança conceitual: o "problema a ser controlado" não é mais o vetor, mas o vírus e, ao se tornarem não vetores, os A. aegypti infectados com Wolbachia são transformados em "aliados" nos esforços para combater as doenças. Banner do projeto WMP. No lado superior direito, está escrito "Eliminar a Dengue - Desafio Brasil", que é o nome usado pelo WMP em seus primórdios. Na parte superior esquerda, há um mosquito branco com pontos verdes. No meio, em negrito, está escrito "Notícia boa vem voando"; depois, abaixo, em fonte menor, "A Fiocruz traz para o seu bairro um aliado eficiente no combate a dengue a dengue, Zika e chikungunya: o Aedes aegypti com Wolbachia" . Fonte: Foto do autor. Rio de Janeiro - 08 de dezembro de 2017. As liberações de mosquitos infectados com Wolbachia ocorreram no Rio de Janeiro, durante meu trabalho de campo, em 2017-2018. Também neste período o governo do Rio havia declarado falência, levando agentes de saúde pública pagos pelo governo que colaboravam com o WMP a entrarem em greve por não receberem seus salários. Esse contexto ainda era composto pela escalada da violência dos conflitos no Rio de Janeiro, com tiroteios e conflitos armados entre traficantes de drogas, milicianos e forças policiais/militares, muitas vezes com resultados fatais, especialmente nas favelas e periferias do Rio. As deficiências financeiras públicas do Rio e a violência generalizada não só complicaram a logística, mas também introduziram questões sobre a liberação do A. aegypti infectado com Wolbachia como uma prioridade de política pública. Ou, como disse um morador da favela durante um "engajamento público" do WMP, "A dengue pode até matar, mas sabe o que mata mesmo por aqui? São as 'balas perdidas', que sempre acabam achando um jeito de encontrar nossos corpos negros". Talvez a questão levantada por essa observação pungente não seja a de ter que escolher entre implementar soluções tecnológicas para os problemas de saúde ou abordar questões históricas de desigualdade e racismo, mas como as prioridades são definidas e, mais importante, como a saúde é entendida. Afinal de contas, um "mundo saudável" não é apenas aquele em que as pessoas não sofrem os efeitos nocivos dos vírus da dengue, Zika ou chikungunya em seus corpos, mas também um mundo em que as pessoas não precisam viver sob o som de metralhadoras e helicópteros da polícia. Situar [placing] mosquitos Situar [placing] mosquitos - ou seja, colocar esses insetos em lugares, posições e contextos específicos - demonstra como até mesmo uma única espécie pode estar envolvida em diferentes narrativas, debates, lutas e agendas e como, concomitantemente, esses diferentes enquadramentos do A. aegypti moldam as percepções e interações multiespécies, em especial os esforços de controle vetorial. Para entender o lugar dos mosquitos, eu me baseio em vários antropólogos, geógrafos e outros cientistas sociais que há muito tempo descrevem como o "lugar" não é limitado, estático nem singular, mas um processo social, político, histórico e desigual que está sempre mudando e em construção. A presença do A. aegypti e de arboviroses no Brasil, ou em qualquer parte do mundo, não pode ser dissociada das histórias que moldam esses ambientes e sociedades. O antropólogo Alex Nading (2014) define essas conexões em termos da "política do emaranhamento", os complexos nós de pessoas, mosquitos, meio ambiente e práticas sociais, culturais e médicas. Ao descrever esses vários entendimentos do A. aegypti, uma espécie notória por seu papel na transmissão de vírus patogênicos, mostrei como é importante examinar as maneiras pelas quais lugares criam mosquitos e mosquitos criam lugares. Esse texto também é um lembrete de que qualquer projeto que possa considerar a eliminação de mosquitos, ou qualquer outro esforço para lidar com arboviroses , deve refletir sobre quem está implementando o projeto, onde e como ele está sendo desenvolvido, quem é afetado por ele e quais são as motivações/apoio para a escolha do projeto. Situar - e, consequentemente, o que é considerado um "mundo saudável" - é importante quando se considera o lugar dos mosquitos. Referências Lira, Luciana Campelo, Fernanda de Souza Meira e Roberta Bivar C. Campos. 2018. "Tensões e (Re)Elaborações Sobre Gênero e Deficiência No Debate Sobre Aborto: Reflexões Etnográficas No Contexto Da Síndrome Congênita Do Zika Vírus." Trabalho apresentado na 31ª Reunião Brasileira de Antropologia (RBA), Brasília, dezembro. Lopes, Gabriel, e Luísa Reis-Castro. 2019. "Um vetor em (re)construção: A History of Aedes Aegypti as Mosquitoes That Transmit Diseases in Brazil". Em Framing Animals as Epidemic Villains, editado por Christos Lynteris, 147-75. Londres: Palgrave Macmillan. Löwy, Ilana. 2005. Vírus, Mosquitos e Modernidade: A Febre Amarela No Brasil Entre Ciência e Política. Traduzido por Irene Ernest Dias. [2001]. Vol. 23. Maia, Túllio Dias da Silva. 2020. "A luta contra o mosquito: Other-than-Vector Ecologies in a 'ZikaFree' Brazilian Sertão." Somatosfera: Ciência, Medicina e Antropologia - Série Histórias do Zika. 2020.http://somatosphere.net/2020/mosquito-struggle-zika.html/. Acessado em 2 de março de 2020. Nading, Alex M. 2014. Mosquito Trails: Ecology, Health, and the Politics of Entanglement [Trilhas de Mosquitos: Ecologia, Saúde e a Política do Emaranhamento]. Berkeley: University of California Press. Nascimento, Abdias do. 1989. Brasil, Mistura ou Massacre? Essays in the Genocide of a Black People [Ensaios sobre o Genocídio de um Povo Negro]. Dover, MA: Majority Press. Pires-Alves, Fernando Antônio, Carlos Henrique Assunção Paiva, and Nísia Trindade Lima. 2018. "In the Baixada Fluminense, in the Shadow of the 'Sphinx of Rio': Popular Struggles and Health Policies at the Dawn of the SUS." Ciência & Saúde Coletiva 23 (6): 1849-58. Stepan, Nancy Leys. 1991. The Hour of Eugenics : Race, Gender, and Nation in Latin America. Ithaca: Cornell University. * Texto originalmente publicado no blog Platypus, organizado pela Committee for the Anthropology of Science, Technology & Computing (CASTAC), unidade vinculada a Associação Americana de Antropologia (AAA). Disponível no orignal em <https://blog.castac.org/2020/09/the-vector-the-viruses-and-the-healthy-world-placing-aedes-aegypti-in-brazil/> ** Outras estratégias incluem mosquitos geneticamente modificados, transgênicos ou geneticamente dirigidos, bem como mosquitos irradiados. *** Nota do tradutor: Os processos descritos por Luísa Reis-Castro continuam profundamente atuais. O agravamento da crise climática, assim como a pandemia de Covid-19, posteriores a escrita do texto, chamam atenção para a urgência do tema, assim como ressalta as propostas de enfrentamento a estas crises devem ser refletidas não só de maneira técnica, mas também de maneira política. Um dos maiores méritos do texto é a forma como ele convida a imaginar-se vivendo com os mosquitos e não contra eles. O Conselho Nacional de Saúde (CNS) publicou nota em fevereiro deste ano alertando que em 2024 teríamos a pior epidemia de dengue já registrada no país. Em Março, a Fio-Cruz afirmou que “A dengue está de volta”. Refletir sobre as lutas passadas travadas contra o A. Aegypti ressalta como a linguagem e, consequentemente, a percepção sobre estas epidemias ainda permanece a mesma. As piores epidemias de nosso tempo ainda devem acontecer dadas as tendências e elas continuam a ser descritas como uma novidade, apesar de serem um processo sistêmico. O Mosquito ainda é o inimigo, indesejável. Esta ofensiva não tem se mostrado como a mais eficaz, e as mudanças climáticas favorecem cada vez mais a reprodução do mosquito. Mudar a maneira como pensamos sobre o A. aegypti pode nos levar a imaginar soluções novas para velhos problemas. 5/20/2024 0 Comentários Emerson Giumbelli no PassagensNa última semana, a equipe do Passagens teve a alegria de ouvir Emerson Giumbelli, professor do Departamento de Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), sobre seus interesses de pesquisa mais recentes – que, como os nossos, transitam entre religião, espaço, materialidades e arte. Agradecemos pelo diálogo estimulante e esperamos encontrá-lo novamente noutros espaços com outras questões. 👣
Uma tecnologia médica pode manter as pessoas vivas que, de outra forma, já teriam morrido. Aonde isso levará? Em novembro de 2022, uma mulher de vinte e três anos chamada Shania Arms postou um vídeo no TikTok. A filmagem a mostra em uma sessão de fotos, usando calça jeans, salto alto preto e uma coroa de flores brancas, descansando sob palmeiras. Um prédio atrás dela, com janelas altas e arredondadas, poderia ser um hotel. Mas ao lado dela, em todas as fotos, há um carrinho de metal cheio de equipamentos médicos. Dois grandes tubos de plástico, um vermelho-cereja e outro ameixa escuro, passam do carrinho para Arms, entrando em seu corpo abaixo da clavícula. Ela tem fibrose cística, uma doença que danifica os pulmões. Os dela estão falhando, e a máquina no carrinho os substituiu. A chamada Oxigenação por Membrânea Extracorpórea ou ECMO (acrônimo de “extracorporeal membrane oxygenation”, nome da máquina em inglês), remove o dióxido de carbono do sangue e o substitui por oxigênio. Ela pode realizar o trabalho do coração e dos pulmões fora do corpo. Quando Arms fez o vídeo, ela estava em ECMO há 47 dias, vivendo na UTI de um hospital de Orlando - o prédio atrás dela no vídeo - esperando por um transplante de pulmão. Sem a ECMO, ela morreria. Mas, devido à complexidade da máquina e aos riscos que a acompanham - sangramento intenso, derrame, infecção, mau funcionamento -, ela não podia sair. Ela estava esperando, presa em uma espécie de limbo entre a vida e a morte. Embora a tecnologia de ECMO tenha mais de meio século de existência, ela ainda eraconsiderada um tratamento experimental até recentemente. Os dispositivos de ECMO começaram a ser usados para substituir os pulmões destruídos pela COVID-19; histórias de recuperações incríveis começaram a se espalhar, casos em que pacientes com insuficiência respiratória conseguiram sobreviver após cento e quarenta e nove dias de ECMO. Familiares de pacientes com COVID passaram a ligar para os hospitais em busca das máquinas. Os primórdios da ECMO remontam a 1931, quando um residente de cirurgia em Boston chamado John Gibbon cuidou de uma mulher com embolia pulmonar - uma artéria bloqueada nos pulmões, o que dificultava o recebimento de oxigênio pelo sangue e o transporte para o resto do corpo. Gibbon não tinha tratamento e só pôde observar seu declínio e morte. "Durante aquela longa noite... ocorreu-me naturalmente a ideia de que se fosse possível remover continuamente parte do sangue azul... colocar oxigênio nesse sangue... e depois injetar continuamente o sangue agora vermelho de volta nas artérias da paciente, poderíamos ter salvado sua vida", escreveu Gibbon mais tarde. "Teríamos contornado o êmbolo obstrutivo e realizado parte do trabalho do coração e dos pulmões da paciente fora do corpo dela." A mulher havia morrido pela manhã, mas Gibbon começou a trabalhar. Em 1934, ele havia desenvolvido uma máquina capaz de manter a circulação de um gato por trinta minutos. Em 1952, ela finalmente estava pronta para os seres humanos. Gibbon usou a máquina para substituir o coração e os pulmões de uma estudante universitária enquanto operava o coração dela. Ela sobreviveu; esse evento marcou o advento da moderna cirurgia de coração aberto. O circuito de bypass de Gibbon logo se tornou parte integrante da cirurgia cardiotorácica. Mas a tecnologia dependia da mistura direta de oxigênio e sangue - um processo que intoxicava o sangue após cerca de uma hora. O sistema de Gibbon deixava muito oxigênio flutuando livremente na corrente sanguínea. Em 1965, Robert Bartlett, outro residente de cirurgia em Boston, começou a resolver esse problema. Bartlett construiu um "oxigenador de membrana" de silicone, que atenuava os efeitos nocivos do oxigênio, permitindo que ele se difundisse lentamente no sangue por meio de uma membrana semipermeável, essencialmente da mesma maneira que ele viaja pelas paredes finas dos alvéolos em nossos pulmões. Isso deu tempo para que a hemoglobina na corrente sanguínea do paciente absorvesse o oxigênio. Em três anos, seus dispositivos estavam mantendo animais vivos por meio de "circulação extracorpórea" por até quatro dias. Em 1971, seus colegas usaram uma configuração semelhante para dar suporte a um homem com insuficiência respiratória. Ele viveu na máquina por trinta e seis horas, tornando-se o primeiro sobrevivente humano da ECMO. Em 1975, Bartlett e seus associados usaram o dispositivo para sustentar um recém-nascido que desenvolveu insuficiência respiratória após o nascimento. Em quinze anos, centenas de bebês com problemas semelhantes foram salvos com a ECMO, com uma taxa de sobrevivência de 80%. A tecnologia tornou-se padrão nos maiores centros pediátricos. Mas um estudo com pacientes adultos, em 1979, encontrou uma taxa de mortalidade de noventa por cento: parecia que o uso da ECMO em adultos era muito mais difícil, porque eles geralmente têm vários problemas médicos e suas doenças são mais complexas. A adoção da ECMO em pacientes adultos ficou praticamente estagnada até o surgimento da gripe H1N1 no Hemisfério Sul, em 2008. "Os australianos estavam relatando que estavam tendo uma epidemia, e a única coisa que estava melhorando os resultados era a ECMO", disse-me Bartlett. A tecnologia havia avançado e os médicos estavam mais aptos a usá-la; as máquinas agora mantinham os pacientes vivos enquanto seus corpos combatiam a infecção. Um estudo de 2009 descobriu que a ECMO ajudava na insuficiência respiratória por outras causas. O número de hospitais que oferecem ECMO triplicou em dez anos. E então veio a pandemia do coronavírus. Em 20 de novembro de 2020, Henry Garza começou a sentir dor de cabeça. Ele tinha 54 anos, morava em Illinois com sua esposa, Michele, e quatro filhos. Seu teste de COVID deu positivo e ele sentiu falta de ar. "As pessoas que vão ao hospital não voltam para casa", disse Garza à sua esposa, mas ele foi mesmo assim. Um mês depois, ele ainda estava no hospital e seus pulmões estavam piorando. Ele desconfiava da intubação - tinha ouvido falar que muitos pacientes não sobreviviam por muito tempo depois de serem colocados em ventiladores - e uma enfermeira lhe falou sobre a ECMO, que permitiria que seus pulmões se curassem, poupando-os do trabalho de respirar enquanto estivessem inflamados por uma infecção viral. Michele lembra que a ECMO foi apresentada como "uma ponte para a cura ou uma ponte para o transplante". Ela se lembra de ter pensado: "Se é uma ponte, vamos usá-la". Um ventilador, como muitas outras tecnologias médicas, às vezes pode prejudicar tanto quanto ajudar. Ele assume o trabalho de respiração e o controla, mas forçar o ar nos pulmões danificados pode prejudicá-los ainda mais. No início da pandemia, a taxa de mortalidade de pacientes com COVID-19 ventilados chegava a 60%. Na primavera de 2020, os médicos da N.Y.U. trataram trinta pacientes com COVID-19 ventilados com ECMO. Noventa por cento sobreviveram. Mais tarde naquele ano, um estudo publicado pela The Lancet, com mais de mil pacientes com COVID tratados com ECMO, encontrou uma taxa de sobrevivência de sessenta por cento. Em 2022, pesquisadores da Universidade de Vanderbilt estudaram um grupo de pacientes com COVID-19 que utilizavam ventiladores e foram submetidos à ECMO por sugestão de seus médicos. Trinta e cinco foram aprovados, e vinte sobreviveram. Entre os demais, a taxa de sobrevivência foi de dez por cento. Jeffrey DellaVolpe, um intensivista do Texas, começou a se perguntar se não seria melhor pular totalmente o ventilador. Dos cinquenta e dois pacientes com COVID-19 que ele e seus colegas trataram com ECMO, doze foram colocados nela sem usar um ventilador primeiro. Sua equipe descobriu que, embora a taxa média de sobrevivência de pacientes ventilados com ECMO fosse de cerca de 50%, ela era de 75% entre os pacientes que receberam ECMO primeiro. DellaVolpe especulou que um dos motivos pelos quais os pacientes que receberam ECMO primeiro tiveram resultados mais positivos foi o fato de poderem estar acordados. Como a ECMO não exige sedação, como fazem os ventiladores, ele podia tirá-los da cama para trabalhar com os fisioterapeutas. "Ao perceber isso, comecei a achar que esse aparelho ganharia outro lugar na UTI", disse-me DellaVolpe. Em teoria, a ECMO poderia substituir amplamente o uso de ventiladores para insuficiência respiratória. Hoje em dia, as UTIs costumam ser silenciosas e sepulcrais; talvez um dia elas estejam cheias de pacientes ambulantes e falantes. Garza ficou em ECMO por cento e dezenove dias. Ele passou a conhecer a máquina tão bem que conseguia saber quando o oxigenador precisava ser trocado. Ele tinha a alucinação de estar preso em uma teia de aranha e, às vezes, sonhava que estava sendo mantido vivo contra sua vontade. "Era uma sensação de estar preso o tempo todo", disse ele. Seus pulmões não se recuperaram, mas a ECMO permitiu que ele entrasse na lista de espera para um transplante. Ele perguntou às enfermeiras: "Posso esperar em casa?" A resposta foi direta. "Se o tirarmos dessas máquinas, você morrerá. E você não pode levá-las para casa com você." Finalmente, em abril de 2021, ele recebeu novos pulmões. Jon Marinaro, médico de emergência e intensivista da Universidade do Novo México, está promovendo o uso da ECMO. Todos os anos, quase quatrocentos mil americanos sofrem uma parada cardíaca fora de um hospital. Apesar do uso de Reanimação Cardiorrespiratória (RCP), desfibriladores e medicamentos potentes, menos de um em cada dez sobrevive. "É aí que entra a ECMO", disse-me Marinaro. Em uma pequena sala repleta de bombas de ECMO, ao lado da UTI pediátrica de seu hospital, Marinaro me mostrou como colocar um tubo de ECMO, ou cânula, em um modelo que ele havia construído com cano de PVC branco. Cartões de agradecimento desenhados à mão por uma turma de alunos do que seria o 2º ano do ensino fundamental no Brasil (entre 6 e 7 anos) estavam colados em um armário atrás dele: Marinaro e sua equipe haviam salvado a vida da professora deles com ECMO. "Se você puder fazer melhor do que a RCP, você salvará mais vidas", disse ele. Na França, as equipes de emergência têm usado a ECMO para tratar a parada cardíaca desde 2011, colocando pacientes com ataques cardíacos nas máquinas, seja no Louvre ou no metrô. Em 2014, Demetris Yannopoulos, cardiologista da Universidade de Minnesota, iniciou um programa semelhante em Minneapolis. O que ele descobriu o surpreendeu. "Conseguimos salvar quase metade" dos pacientes, ele me disse. Ele fez uma pausa. "Eu não estava esperando esse tipo de sobrevivência." Em um estudo randomizado de pacientes com parada cardíaca, ele descobriu que 43% dos pacientes tratados com ECMO e RCP sobreviveram; com RCP apenas, apenas 6% sobreviveram. Marinaro inicialmente se interessou pela ECMO como uma forma de salvar pacientes com embolia pulmonar - a mesma doença que inspirou John Gibbon, em 1931. Em 2016, quatro pacientes de seu hospital morreram em decorrência dessa doença. No ano seguinte, Marinaro e sua equipe iniciaram um programa para tratar esses pacientes com ECMO. Desde então, eles não tiveram uma única morte em pacientes tratados prontamente. Logo ele começou a usar a ECMO para tratar também a parada cardíaca - a máquina pode substituir o coração até que esse órgão seja reiniciado - e ele se converteu. A maioria de seus pacientes recebeu cerca de 50 minutos de RCP antes de chegar à ECMO. "Como médico de emergência, você sabe o que isso significa", ele me disse. Trabalho em um departamento de emergência no Novo México e, de acordo com minha experiência, após uma hora de RCP sem melhora, a possibilidade de sobrevivência é quase nula. Eu provavelmente declararia esses pacientes como mortos. E, no entanto, depois desse ponto, cerca de 30% dos pacientes de Marinaro sobrevivem. "Se você triplicasse a sobrevida com um medicamento contra o câncer, as pessoas não acreditariam", disse ele, enquanto uma bomba de ECMO zumbia e passava água por seu modelo de PVC. "Mas nós triplicamos a sobrevida de uma parada cardíaca fora do hospital. Na medicina, triplicar a sobrevida é algo inédito!" Ele me contou sobre um paciente que recebeu RCP por três horas e foi levado a dois hospitais diferentes, antes que a equipe de Marinaro o colocasse na ECMO. "Esse cara saiu do hospital", disse ele. Recentemente, ele tratou uma menina de 16 anos chamada Sophia, que sofreu uma parada cardíaca no banheiro de uma Starbucks. Ela recebeu RCP por uma hora e nove minutos. "Eles estavam prestes a desistir", ele me disse. A mãe dela, uma médica chamada Angelina Villas-Adams, esperou na sala de emergência com o marido enquanto a equipe trabalhava na filha deles; um capelão apareceu. Os protocolos da própria Marinaro recomendam que não se utilize a ECMO após mais de uma hora de RCP, pois a recuperação neurológica se torna muito improvável. Mas então um paramédico disse que a tinha visto se mexer. Sophia havia apresentado algo chamado consciência induzida por RCP; as compressões torácicas estavam fazendo circular sangue suficiente para que ela movesse um braço. Marinaro abriu uma exceção e colocou Sophia na ECMO. Mais tarde, na UTI, alguém sussurrou "Aperte minha mão" em seu ouvido, e ela o fez. Estávamos pensando: "Será que ela vai acordar?", disse-me seu pai, Buddy. A bomba de ECMO, disse ele, lembrava uma máquina de fazer raspadinha de gelo vermelha. Depois de dois dias, o coração de Sophia se recuperou e ela saiu da ECMO. Então ela falou: "Meus dedos dos pés estão esmagados". As botas pneumáticas, destinadas a evitar coágulos sanguíneos, estavam apertando seus pés. "A ECMO salvou minha vida", disse Sophia quando a encontrei em Albuquerque, vários meses depois. "Eu sobrevivi quando deveria ter morrido", disse ela. "Deveríamos estar fazendo isso muito mais", disse Marinaro. Ele acha que a ECMO deveria estar em toda parte. "Como tornar a ECMO disponível para todos, para que você possa morrer em qualquer lugar, a qualquer momento, e alguém possa salvá-lo?" Na parte de trás de uma ambulância, ele me mostrou um circuito de ECMO com manivela manual que ele e outro médico, Darren Braude, criaram para paradas cardíacas no campo. "Nós fazemos a dança da manivela!", disse ele, sorrindo. Curvado na parte de trás da ambulância, girei a manivela. Ela gemia como um carro Hot Wheels. A configuração era surpreendentemente simples. Quando saímos da ambulância, Marinaro sugeriu enviar alguns desses circuitos para o hospital rural onde trabalho. Pensei em todos os pacientes que poderíamos salvar. Há cerca de uma década, um adolescente que não podia ser salvo foi internado em um hospital da Nova Inglaterra. Assim como Shania Arms, ele tinha fibrose cística. Um transplante de pulmão anterior estava falhando, e sua única esperança era outro transplante. Ele foi colocado em ECMO enquanto esperava. Dois meses depois, os médicos descobriram que ele havia desenvolvido um câncer incurável. Agora não havia como ele sair da UTI. Seus pulmões não tinham mais recuperação e o câncer o tornava inelegível para transplante. Ele estava preso em uma ponte para lugar nenhum.
Alguns membros da equipe médica achavam que a ECMO deveria ser interrompida. O transplante não era mais possível, e as máquinas de ECMO eram escassas. Enquanto o paciente estivesse na máquina, ela não poderia ser usada para salvar outra pessoa. Também é caro; de acordo com um estudo de 2023, a taxa média de hospitalização para pacientes com COVID em ECMO foi de cerca de oitocentos e setenta mil dólares, e os casos prolongados podem ultrapassar vários milhões. Esses recursos podem ser necessários para ajudar outros pacientes, e o menino não poderia viver na UTI indefinidamente. Mas outros membros da equipe discordaram. "Ele estava trocando mensagens de texto com os amigos", disse Robert Truog, pediatra e bioeticista que participou do caso e escreveu sobre ele no The Lancet. Ele estava passando tempo com a família e fazendo o dever de casa on-line. Como podia ficar acordado com a ECMO, ele ainda podia se envolver em atividades significativas. Situações como essa representam um "profundo dilema ético", disse-me Raghu Seethala, intensivista e especialista em ECMO do Brigham and Women's Hospital. "A tecnologia está à frente da ética", disse outro especialista. De acordo com Truog, os defensores da continuidade do tratamento apontaram que os pacientes são rotineiramente mantidos vivos em aparelhos como ventiladores ou por meio de tratamentos como a diálise, sem expectativa de recuperação. Por que a ECMO é diferente? "É diferente", me disse Kenneth Prager, diretor de ética clínica do Centro Médico Irving da Universidade de Columbia. Os pacientes podem, às vezes, utilizar essas máquinas em casa, enquanto a ECMO requer uma UTI. Além disso, os pacientes de UTI com insuficiência grave de órgãos raramente estão totalmente conscientes; com a ECMO, "você pode ter um paciente acordado e alerta, andando, andando de bicicleta ergométrica e, ainda assim, o coração e os pulmões são incapazes de sustentar a vida", disse Prager. "O contraste é totalmente incomparável com qualquer outra tecnologia." É essa semelhança impressionante com a vida, quando um paciente está no limiar da morte, que torna a situação criada pela ECMO tão surpreendente e difícil. É uma "forma precária de existência, que às vezes levanta questões sobre nossas definições tradicionais de vida e morte", escreveram Prager e seus colegas em um artigo publicado na revista Circulation. Usando a ECMO, um paciente com insuficiência grave de órgãos pode parecer bem e se sentir bem, mas sem recuperação ou transplante, ele não pode deixar a UTI e não tem esperança de sobrevivência a longo prazo. A conversa sobre quando parar envolve os próprios pacientes, que devem pensar em escolher o momento de sua própria morte. Seja quem for que decida, é como dar uma sentença, disse Prager. No final, a equipe responsável pelo tratamento do adolescente apresentou um compromisso à família. Em vez de retirar ativamente a ECMO - literalmente, colocar um interruptor para "desligar" - eles não manteriam mais a máquina. Quando o oxigenador começou a se desgastar, eles optaram por não trocar por um substituto. Um dia, quando o oxigenador falhou, o menino perdeu a consciência e morreu. Em outros casos, entretanto, os pacientes se recusaram a considerar qualquer redução de escala em seus cuidados. Esses pacientes viveram na UTI pelo tempo que puderam, até que uma complicação os matou. Aqui, também, a ECMO introduz novas complexidades. Um ventilador, ou diálise, evita uma cascata de deterioração que acaba causando parada cardíaca - a última via comum de morte. E, uma vez que a parada cardíaca ocorre, geralmente é difícil revertê-la. Mas a ECMO pode assumir completamente o trabalho do coração, interrompendo a progressão usual em direção à morte. A parada cardíaca perde o sentido. Parece quase certo que, quanto mais usarmos a ECMO para evitar a morte, mais pessoas acabarão vivendo em UTIs, mantidas vivas apenas pelas máquinas. "Esse já é um grande problema", disse-me Prager. "E ele só vai piorar." Em parte, isso se deve ao fato de os médicos não conseguirem prever perfeitamente quem se beneficiará da ECMO ou dos tratamentos que ela possibilita. "Colocamos as pessoas na ECMO acreditando que ela será uma ponte para alguma coisa, e isso acaba não acontecendo", disse Prager, talvez porque elas não consigam se recuperar sozinhas ou não sejam elegíveis para um transplante. As expectativas dos pacientes também podem desempenhar um papel importante. Seethala me contou sobre uma ação judicial movida contra uma equipe de médicos por não oferecer acesso à ECMO: em 2019, um júri considerou os médicos responsáveis por não transferir uma mulher do Bronx para um centro de ECMO. (Depois que uma apelação em 2021 reduziu seu acordo, ela recebeu dez milhões de dólares por dor e sofrimento passados e futuros). Outros observadores expressaram preocupação com o fato de que os pacientes podem vir a esperar a ECMO como um tratamento padrão para qualquer parada cardíaca, como a RCP é agora. Blair Bigham, outro médico de emergência e intensivista, contou-me que, durante a pandemia, viu muitos hospitais adquirirem máquinas de ECMO e depois as utilizarem indiscriminadamente em pacientes com pouca probabilidade de recuperação. "Assim que você tiver o botão de ECMO, você vai usá-lo", ele me disse. Jessica Zitter, a médica de cuidados paliativos, chama essa tendência de sempre adicionar outra máquina, ou outro medicamento, de esteira rolante do fim da vida. "Estamos sempre tentando fazer mais e mais e mais com as pessoas, quando talvez não devêssemos", disse Bigham. "O problema geral aqui é que temos esse medo de deixar as pessoas morrerem", explicou. Em março de 2023, visitei o laboratório de Robert Barlett, que se mudou em 1980 da U.C. Irvine, onde ele originalmente desenvolveu a ECMO na década de 1970, para a Universidade de Michigan. Ann Arbor estava cinza, mas o laboratório estava iluminado e cheio de atividade. Bartlett, que agora tem 84 anos, estava em casa, recuperando-se de um procedimento médico. Ele ligou durante a minha visita para me contar no que estavam trabalhando. Um dos focos é encontrar maneiras de tirar os pacientes que estão em ECMO da UTI ou até mesmo do hospital. "Eles precisam ser capazes de voltar para casa com esses dispositivos", disse Bartlett. Para isso, o laboratório está tentando criar um mini-ECMO, um tipo de pulmão artificial vestível. No final do corredor da sala de conferências onde conversei com Bartlett, uma estagiária de pesquisa chamada Gabriele Seilo estava sentada em uma bancada de laboratório, enrolando discos ranhurados com um tecido plástico transparente. As fibras plásticas contêm microporos, o que lhes permite agir como capilares pulmonares, que introduzem oxigênio na corrente sanguínea em quantidades precisas. "Isso facilita a troca de gases", explicou Seilo, virando-se de sua bancada. Ao lado dele, um compartimento continha protótipos de diferentes tamanhos. A ideia é que o disco seja usado fora do corpo, conectado a um tanque de oxigênio portátil. O sangue pode fluir através do dispositivo de forma passiva, de modo que ele não precisa de uma bomba. Em outra sala, o laboratório estava desenvolvendo uma membrana de ECMO que secreta óxido nítrico. Os oxigenadores de ECMO tendem a criar coágulos sanguíneos, e os pacientes precisam de medicamentos para evitar isso. Mas esses medicamentos podem, por sua vez, causar sangramentos perigosos. "O sangramento e a coagulação são os maiores problemas da ECMO", disse Bartlett por telefone. O óxido nítrico impede a formação de coágulos, mas não causa sangramento. Isso poderia tornar a ECMO muito mais segura e potencialmente adequada para uso fora do hospital. No final do corredor, encontrei o que talvez seja a inovação mais surpreendente do laboratório. Alvaro Rojas-Peña, co-diretor do laboratório, levou-me a uma antessala que ficava ao lado de uma sala de cirurgia. "Veja isso", disse Rojas-Peña. Ele apontou para um pedestal no meio da sala. Eu me inclinei para frente. No pedestal, havia um coração isolado e pulsante. Cânulas o conectavam a um circuito especial de ECMO. O coração, que havia sido retirado de um animal de pesquisa, estava envolto em um saco plástico para evitar a ressecamento; ele se contorcia e se retorcia a cada batida, vivo. Rojas-Peña me mostrou um iPad, no qual um software monitorava o coração usando quase uma dúzia de parâmetros fisiológicos. Por incrível que pareça, o coração estava gerando uma pressão arterial normal. Com a ajuda da ECMO, o coração foi mantido vivo e bombeando, fora de qualquer corpo, por quase vinte e quatro horas. Em poucos minutos, ele seria transplantado em um animal na sala de cirurgia ao lado. Receber um transplante de órgão é como ganhar várias loterias ao mesmo tempo. Um doador deve ser saudável o suficiente para que a função do órgão seja preservada e estar próximo geograficamente o bastante para que o tempo de transporte seja minimizado; o órgão deve ser compatível com o tipo sanguíneo do receptor e este não pode estar doente demais para sobreviver à operação. Todas essas condições devem estar alinhadas no momento em que um órgão se torna disponível; todos os dias, dezessete pessoas morrem nos EUA porque alguma parte dessa equação falha ou simplesmente porque os órgãos não podem ser encontrados. "Setenta por cento dos órgãos de doadores são rejeitados", disse-me Rojas-Peña, porque alguma coisa não está no ponto ideal. As implicações da aplicação da ECMO ao transplante de órgãos podem ser profundas. Se os órgãos pudessem ser mantidos vivos de forma confiável fora do corpo, eles poderiam ser enviados a um banco de órgãos centralizado. O tempo de transporte não seria mais um fator. Os órgãos poderiam ser perfeitamente combinados com os receptores, e os órgãos marginais poderiam ser ajustados fora do corpo com medicamentos. As listas de espera poderiam desaparecer. "O transplante não seria mais uma cirurgia de emergência", disse Rojas-Peña. Ele poderia ser planejado, como qualquer outra operação. Em Toronto, um grupo já começou a fazer isso com pulmões humanos, o que lhes permitiu utilizar cerca de setenta por cento dos pulmões doados para transplante, em comparação com a média de cerca de vinte por cento nos Estados Unidos. Um dos riscos da ECMO, da forma como é empregada atualmente, é que ela deixará os pacientes presos em uma ponte para lugar nenhum. Mas a própria tecnologia pode ser uma ponte para um lugar novo. Em última análise, sugeriu Bartlett, ela pode ter usos além do transplante. "Poderíamos ter órgãos que fizessem coisas", disse ele, como fabricar fatores de coagulação ou glóbulos vermelhos. "Poderíamos retirar um fígado cheio de câncer, tratá-lo e devolvê-lo ao paciente", ele me disse. "Achamos que todas essas coisas podem ser possíveis." ♦ Apresentação do Autor: Os textos de Clayton abrangem cantos estranhos e fascinantes da ciência e da saúde, com foco no potencial terapêutico das drogas ilícitas, na interseção entre as mudanças climáticas e a saúde humana e na interdependência do mundo ao nosso redor e dentro de nós. Ele é formado em medicina pela Universidade de Columbia e é um médico de emergência treinado em Harvard. Ele vive e trabalha no Novo México e é representado por Katie Cacouris, da The Wylie Agency. Comentários do tradutor: No Brasil o ECMO ainda é uma terapia excepcional. Sua difusão no país não pode ser comparada aos casos apresentados por Clayton Dalton neste ensaio. Não obstante, como acontece em outras terapias, mercados e tendências no campo da Saúde, podemos esperar um avanço destas terapias no caso brasileiro. O último estudo a ser realizado pelo governo federal no ambito do SUS foi publicado em Maio de 2021, ainda no contexto da pandemia de COVID-19. O “Relatório de Recomendação” produzido pela Conitec (Coordenação de Monitoramento e Avaliação de Tecnologias em Saúde do Ministério da Saúde) concluiu que “A relação de custo-utilidade da implementação da ECMO no Brasil é aceitável. Inicialmente ocorreu um declínio do custo devido à redução do tempo de permanência na UTI, mas com o ganho experiência, a melhora da sobrevida pode aumentar o custo destes pacientes”. No âmbito dos interesses e discussões feitas no grupo Passagens o texto nos instiga e levanta questões sobre como as decisões éticas da ECMO são solucionadas e padronizadas, em certa medida os debates trazidos por Clayton poderão definir políticas de cuidados paliativos, as formas de gestão dessa nova fase da vida, que agora é mais além do que nascimento, vida e morte. A ECMO insere nesta equação o estado da sobrevida, uma experiência que tem se ampliado conforme avançamos as fronteiras tecnológicas e, com elas, as formas de gestão da vida e da morte na biomedicina moderna. Recomendações bibliográficas Copelotti, L. (2023). Os fins do cuidado: processos de tomada de decisão, suportes avançados de vida e cuidados paliativos. Anuário Antropológico, 48(1). Disponível gratuitamente em: <https://doi.org/10.4000/aa.10589> Engelke, M. (2019). The anthropology of death revisited. Annual Review of Anthropology, 48, 29-44.. Disponível gratuitamente em <https://doi.org/10.1146/annurev-anthro-102218-011420> Marini, Marisol. A atuação da imaginação no desenvolvimento de Corações Artificiais: por uma compreensão da corporificação e partilha da imaginação. Mana, v. 27, p. e272207, 2021. Simpson, Bob. (2018) 2023. “Death”. In The Open Encyclopedia of Anthropology, edited by Felix Stein. Facsimile of the first edition in The Cambridge Encyclopedia of Anthropology. Online: http://doi.org/10.29164/18death O Passagens receberá, no dia 24 de Maio, Rodrigo Charafeddine Bulamah. Professor Adjunto do Departamento de Antropologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Foi pesquisador FAPESP de pós-doutorado no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Unifesp (2019-2023) e possui doutorado em Antropologia Social e Etnologia (Universidade Estadual de Campinas e École des Hautes Études en Sciences Sociales, 2018). É pesquisador associado ao CEMI (Unicamp) e ao ResiduaLab (UERJ). Em 2021, recebeu o Prêmio Jovem Pesquisador de Publicação da Société des Américanistes por sua tese de doutorado intitulada "Ruínas circulares: vida e história no norte do Haiti", que será publicada em livro pela Editora Papéis Selvagens.
Rodrigo nos apresentará sua pesquisa mais recente que explora a vida tecnopolítica e afetiva do carvão vegetal no Haiti e suas conexões com práticas ecológicas regenerativas. 📍Instituto de Filosofia e Ciências Sociais-IFCS. Sala 417 às 14h |