Categorias |
Entre em contato conosco. Siga o Passagens no Instagram
|
6/18/2024 0 Comentários Existe “macumba” na Europa? Sobre as experiências de ser um “macumbeiro abroad”Maria Cecília Cerqueira Graduanda em Ciências Sociais pela UFRJ Pesquisadora do URBANO “A senhora achou que não fosse encontrar a gente aqui, não é? Ainda bem que hoje a senhora viu que estava errada.”. Essa foi a frase dita pelo Caboclo Ubirajara enquanto benzia minha cabeça com sua água sagrada na minha primeira ida a um terreiro de Umbanda na Europa, mais precisamente, em Bruxelas, na Bélgica. Desde que soube da minha ida para um intercâmbio de sete meses no exato país, uma das grandes preocupações era como ficaria as minhas obrigações religiosas longe do Brasil. Onde se comprariam as velas? Onde se encontrariam as ervas necessárias para os banhos de descarrego? Em quais esquinas seria possível fazer um despacho? De fato. Não achei que fosse encontrar terreiros e entidades em um continente que tanto batalhou para erradicar qualquer manifestação de religiões de matriz africana ao longo dos séculos. Por que, afinal de contas... existe “macumba” na Europa? Quando o pesquisador Lucas Marques desenvolve a ideia de “linhas de forças” de Bastide para se referir ao sistema de conexão entre pessoas, entidades, orixás e natureza (MARQUES, 2018, pp. 224), entendemos que apesar da importância territorial para estas interligações e manifestações, o sagrado não se limita à artificiliadidade das fronteiras humanas. Como disse Seu Ubirajara, eu estava errada ao pensar que dentro do continente europeu não se encontraria “macumba”, não se “faria macumba” ou não haveria como alguém “virar no santo”. Se a energia desempenhada por orixás e entidades, como exus e caboclos, estão presentes na natureza, não há lógica em pensar na sua limitação espacial e geográfica e não num agenciamento constante, irrestrito ao espaço-tempo humano. Um terreiro, para além de desempenhar um papel espiritual, também é um centro de sociabilidade, do qual trocas e interações pessoais também são realizadas com outros própositos que não apenas os voltados para o desenvolvimento religioso, como é trabalhado pela pesquisadora Daniela Ferreira Evangelista (2015). Dentro do terreiro de Umbanda aqui em Bruxelas, esta percepção é ainda reinterada quando analisamos o senso de comunidade brasileira formada em seu interior, onde os frequentadores podem não apenas se conectar com a sacralidade, mas também com a sua fonte primordial de cultura, ouvindo as pessoas falarem português, e até mesmo comendo os salgadinhos da cantina durante os intervalos da gira. Mas fato é: se uma religião precisa também de materialidade, como trabalhado por diversos estudos na Antropologia da Religião, ser “macumbeiro” em outro continente não é nada fácil. Apesar de manifestações espirituais não se restringirem às delimitações geográficas, a materialidade necessária para se fazer trabalhos, oferendas e despachos não são encontradas com tanta facilidade, seja em relação às ervas, roupas, velas, comidas ou alguidares. Porém, a importância desses recursos como instrumentos de conexão entre sagrado e mundo material, faz com que a adaptação seja necessária e não a exclusão total da ação. As velas nem sempre são as ideais, a feijoada para Preto Velho não necessariamente será “completa”, os despachos muito provavelmente não ocorrerão nas esquinas, devido ao risco de multas. Mas nada disso é motivo real para deixar de realizar e cumprir as obrigações da “macumba”. Morar em outro país sendo um crente de religiões de matriz afriacana é criar estratégias para burlar a realidade da escassez de produtos utilizados no ethos umbandista e candoblecista, e cada país, cidade e região vão oferecer estes recursos em maiores ou menores quantidades, dependendo de fatores como o próprio tamanho da comunidade brasileira naquele lugar. Como visto, por exemplo, pelas ruas da cidade do Porto, em Portugal, que apesar da forte composição do catolicismo em seu espaço urbano, podemos encontrar lojas de artigos religiosos e produtos naturais comercializando imagens de entidades brasileiras da Umbanda e os orixás do Candomblé, além de centros espíritas e cartazes divulgando limpezas e ajudas espirituais. Ser um “macumbeiro abroad” é constantemente criar estratégias para cultivar a
ancestralidade, as bases religiosas e cumprir as obrigações destinadas a cada indivíduo em um outro lugar que não o país de origem. Engana-se quem acredita que manifestações espirituais possuem fronteiras estabelecidas no mundo dos homens, pois tanto as entidades e orixás, quanto estes próprios homens, constantemente se reinventam e formulam novas estratégias para continuar exercendo e colocando em prática a religião. Referências: EVANGELISTA, Daniele Ferreira. Fundando um axé: reflexões sobre o processo de construção de um terreiro de candomblé. Religião & Sociedade, v. 35, p. 63-85, 2015. MARQUES, Lucas. Fazendo orixás: sobre o modo de existência das coisas no candomblé. Religião & Sociedade, v. 38, p. 221-243, 2018.
0 Comentários
O seu comentário será publicado depois de ser aprovado.
Deixe uma resposta. |