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5/20/2024 0 Comentários Emerson Giumbelli no PassagensNa última semana, a equipe do Passagens teve a alegria de ouvir Emerson Giumbelli, professor do Departamento de Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), sobre seus interesses de pesquisa mais recentes – que, como os nossos, transitam entre religião, espaço, materialidades e arte. Agradecemos pelo diálogo estimulante e esperamos encontrá-lo novamente noutros espaços com outras questões. 👣
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Uma tecnologia médica pode manter as pessoas vivas que, de outra forma, já teriam morrido. Aonde isso levará? Em novembro de 2022, uma mulher de vinte e três anos chamada Shania Arms postou um vídeo no TikTok. A filmagem a mostra em uma sessão de fotos, usando calça jeans, salto alto preto e uma coroa de flores brancas, descansando sob palmeiras. Um prédio atrás dela, com janelas altas e arredondadas, poderia ser um hotel. Mas ao lado dela, em todas as fotos, há um carrinho de metal cheio de equipamentos médicos. Dois grandes tubos de plástico, um vermelho-cereja e outro ameixa escuro, passam do carrinho para Arms, entrando em seu corpo abaixo da clavícula. Ela tem fibrose cística, uma doença que danifica os pulmões. Os dela estão falhando, e a máquina no carrinho os substituiu. A chamada Oxigenação por Membrânea Extracorpórea ou ECMO (acrônimo de “extracorporeal membrane oxygenation”, nome da máquina em inglês), remove o dióxido de carbono do sangue e o substitui por oxigênio. Ela pode realizar o trabalho do coração e dos pulmões fora do corpo. Quando Arms fez o vídeo, ela estava em ECMO há 47 dias, vivendo na UTI de um hospital de Orlando - o prédio atrás dela no vídeo - esperando por um transplante de pulmão. Sem a ECMO, ela morreria. Mas, devido à complexidade da máquina e aos riscos que a acompanham - sangramento intenso, derrame, infecção, mau funcionamento -, ela não podia sair. Ela estava esperando, presa em uma espécie de limbo entre a vida e a morte. Embora a tecnologia de ECMO tenha mais de meio século de existência, ela ainda eraconsiderada um tratamento experimental até recentemente. Os dispositivos de ECMO começaram a ser usados para substituir os pulmões destruídos pela COVID-19; histórias de recuperações incríveis começaram a se espalhar, casos em que pacientes com insuficiência respiratória conseguiram sobreviver após cento e quarenta e nove dias de ECMO. Familiares de pacientes com COVID passaram a ligar para os hospitais em busca das máquinas. Os primórdios da ECMO remontam a 1931, quando um residente de cirurgia em Boston chamado John Gibbon cuidou de uma mulher com embolia pulmonar - uma artéria bloqueada nos pulmões, o que dificultava o recebimento de oxigênio pelo sangue e o transporte para o resto do corpo. Gibbon não tinha tratamento e só pôde observar seu declínio e morte. "Durante aquela longa noite... ocorreu-me naturalmente a ideia de que se fosse possível remover continuamente parte do sangue azul... colocar oxigênio nesse sangue... e depois injetar continuamente o sangue agora vermelho de volta nas artérias da paciente, poderíamos ter salvado sua vida", escreveu Gibbon mais tarde. "Teríamos contornado o êmbolo obstrutivo e realizado parte do trabalho do coração e dos pulmões da paciente fora do corpo dela." A mulher havia morrido pela manhã, mas Gibbon começou a trabalhar. Em 1934, ele havia desenvolvido uma máquina capaz de manter a circulação de um gato por trinta minutos. Em 1952, ela finalmente estava pronta para os seres humanos. Gibbon usou a máquina para substituir o coração e os pulmões de uma estudante universitária enquanto operava o coração dela. Ela sobreviveu; esse evento marcou o advento da moderna cirurgia de coração aberto. O circuito de bypass de Gibbon logo se tornou parte integrante da cirurgia cardiotorácica. Mas a tecnologia dependia da mistura direta de oxigênio e sangue - um processo que intoxicava o sangue após cerca de uma hora. O sistema de Gibbon deixava muito oxigênio flutuando livremente na corrente sanguínea. Em 1965, Robert Bartlett, outro residente de cirurgia em Boston, começou a resolver esse problema. Bartlett construiu um "oxigenador de membrana" de silicone, que atenuava os efeitos nocivos do oxigênio, permitindo que ele se difundisse lentamente no sangue por meio de uma membrana semipermeável, essencialmente da mesma maneira que ele viaja pelas paredes finas dos alvéolos em nossos pulmões. Isso deu tempo para que a hemoglobina na corrente sanguínea do paciente absorvesse o oxigênio. Em três anos, seus dispositivos estavam mantendo animais vivos por meio de "circulação extracorpórea" por até quatro dias. Em 1971, seus colegas usaram uma configuração semelhante para dar suporte a um homem com insuficiência respiratória. Ele viveu na máquina por trinta e seis horas, tornando-se o primeiro sobrevivente humano da ECMO. Em 1975, Bartlett e seus associados usaram o dispositivo para sustentar um recém-nascido que desenvolveu insuficiência respiratória após o nascimento. Em quinze anos, centenas de bebês com problemas semelhantes foram salvos com a ECMO, com uma taxa de sobrevivência de 80%. A tecnologia tornou-se padrão nos maiores centros pediátricos. Mas um estudo com pacientes adultos, em 1979, encontrou uma taxa de mortalidade de noventa por cento: parecia que o uso da ECMO em adultos era muito mais difícil, porque eles geralmente têm vários problemas médicos e suas doenças são mais complexas. A adoção da ECMO em pacientes adultos ficou praticamente estagnada até o surgimento da gripe H1N1 no Hemisfério Sul, em 2008. "Os australianos estavam relatando que estavam tendo uma epidemia, e a única coisa que estava melhorando os resultados era a ECMO", disse-me Bartlett. A tecnologia havia avançado e os médicos estavam mais aptos a usá-la; as máquinas agora mantinham os pacientes vivos enquanto seus corpos combatiam a infecção. Um estudo de 2009 descobriu que a ECMO ajudava na insuficiência respiratória por outras causas. O número de hospitais que oferecem ECMO triplicou em dez anos. E então veio a pandemia do coronavírus. Em 20 de novembro de 2020, Henry Garza começou a sentir dor de cabeça. Ele tinha 54 anos, morava em Illinois com sua esposa, Michele, e quatro filhos. Seu teste de COVID deu positivo e ele sentiu falta de ar. "As pessoas que vão ao hospital não voltam para casa", disse Garza à sua esposa, mas ele foi mesmo assim. Um mês depois, ele ainda estava no hospital e seus pulmões estavam piorando. Ele desconfiava da intubação - tinha ouvido falar que muitos pacientes não sobreviviam por muito tempo depois de serem colocados em ventiladores - e uma enfermeira lhe falou sobre a ECMO, que permitiria que seus pulmões se curassem, poupando-os do trabalho de respirar enquanto estivessem inflamados por uma infecção viral. Michele lembra que a ECMO foi apresentada como "uma ponte para a cura ou uma ponte para o transplante". Ela se lembra de ter pensado: "Se é uma ponte, vamos usá-la". Um ventilador, como muitas outras tecnologias médicas, às vezes pode prejudicar tanto quanto ajudar. Ele assume o trabalho de respiração e o controla, mas forçar o ar nos pulmões danificados pode prejudicá-los ainda mais. No início da pandemia, a taxa de mortalidade de pacientes com COVID-19 ventilados chegava a 60%. Na primavera de 2020, os médicos da N.Y.U. trataram trinta pacientes com COVID-19 ventilados com ECMO. Noventa por cento sobreviveram. Mais tarde naquele ano, um estudo publicado pela The Lancet, com mais de mil pacientes com COVID tratados com ECMO, encontrou uma taxa de sobrevivência de sessenta por cento. Em 2022, pesquisadores da Universidade de Vanderbilt estudaram um grupo de pacientes com COVID-19 que utilizavam ventiladores e foram submetidos à ECMO por sugestão de seus médicos. Trinta e cinco foram aprovados, e vinte sobreviveram. Entre os demais, a taxa de sobrevivência foi de dez por cento. Jeffrey DellaVolpe, um intensivista do Texas, começou a se perguntar se não seria melhor pular totalmente o ventilador. Dos cinquenta e dois pacientes com COVID-19 que ele e seus colegas trataram com ECMO, doze foram colocados nela sem usar um ventilador primeiro. Sua equipe descobriu que, embora a taxa média de sobrevivência de pacientes ventilados com ECMO fosse de cerca de 50%, ela era de 75% entre os pacientes que receberam ECMO primeiro. DellaVolpe especulou que um dos motivos pelos quais os pacientes que receberam ECMO primeiro tiveram resultados mais positivos foi o fato de poderem estar acordados. Como a ECMO não exige sedação, como fazem os ventiladores, ele podia tirá-los da cama para trabalhar com os fisioterapeutas. "Ao perceber isso, comecei a achar que esse aparelho ganharia outro lugar na UTI", disse-me DellaVolpe. Em teoria, a ECMO poderia substituir amplamente o uso de ventiladores para insuficiência respiratória. Hoje em dia, as UTIs costumam ser silenciosas e sepulcrais; talvez um dia elas estejam cheias de pacientes ambulantes e falantes. Garza ficou em ECMO por cento e dezenove dias. Ele passou a conhecer a máquina tão bem que conseguia saber quando o oxigenador precisava ser trocado. Ele tinha a alucinação de estar preso em uma teia de aranha e, às vezes, sonhava que estava sendo mantido vivo contra sua vontade. "Era uma sensação de estar preso o tempo todo", disse ele. Seus pulmões não se recuperaram, mas a ECMO permitiu que ele entrasse na lista de espera para um transplante. Ele perguntou às enfermeiras: "Posso esperar em casa?" A resposta foi direta. "Se o tirarmos dessas máquinas, você morrerá. E você não pode levá-las para casa com você." Finalmente, em abril de 2021, ele recebeu novos pulmões. Jon Marinaro, médico de emergência e intensivista da Universidade do Novo México, está promovendo o uso da ECMO. Todos os anos, quase quatrocentos mil americanos sofrem uma parada cardíaca fora de um hospital. Apesar do uso de Reanimação Cardiorrespiratória (RCP), desfibriladores e medicamentos potentes, menos de um em cada dez sobrevive. "É aí que entra a ECMO", disse-me Marinaro. Em uma pequena sala repleta de bombas de ECMO, ao lado da UTI pediátrica de seu hospital, Marinaro me mostrou como colocar um tubo de ECMO, ou cânula, em um modelo que ele havia construído com cano de PVC branco. Cartões de agradecimento desenhados à mão por uma turma de alunos do que seria o 2º ano do ensino fundamental no Brasil (entre 6 e 7 anos) estavam colados em um armário atrás dele: Marinaro e sua equipe haviam salvado a vida da professora deles com ECMO. "Se você puder fazer melhor do que a RCP, você salvará mais vidas", disse ele. Na França, as equipes de emergência têm usado a ECMO para tratar a parada cardíaca desde 2011, colocando pacientes com ataques cardíacos nas máquinas, seja no Louvre ou no metrô. Em 2014, Demetris Yannopoulos, cardiologista da Universidade de Minnesota, iniciou um programa semelhante em Minneapolis. O que ele descobriu o surpreendeu. "Conseguimos salvar quase metade" dos pacientes, ele me disse. Ele fez uma pausa. "Eu não estava esperando esse tipo de sobrevivência." Em um estudo randomizado de pacientes com parada cardíaca, ele descobriu que 43% dos pacientes tratados com ECMO e RCP sobreviveram; com RCP apenas, apenas 6% sobreviveram. Marinaro inicialmente se interessou pela ECMO como uma forma de salvar pacientes com embolia pulmonar - a mesma doença que inspirou John Gibbon, em 1931. Em 2016, quatro pacientes de seu hospital morreram em decorrência dessa doença. No ano seguinte, Marinaro e sua equipe iniciaram um programa para tratar esses pacientes com ECMO. Desde então, eles não tiveram uma única morte em pacientes tratados prontamente. Logo ele começou a usar a ECMO para tratar também a parada cardíaca - a máquina pode substituir o coração até que esse órgão seja reiniciado - e ele se converteu. A maioria de seus pacientes recebeu cerca de 50 minutos de RCP antes de chegar à ECMO. "Como médico de emergência, você sabe o que isso significa", ele me disse. Trabalho em um departamento de emergência no Novo México e, de acordo com minha experiência, após uma hora de RCP sem melhora, a possibilidade de sobrevivência é quase nula. Eu provavelmente declararia esses pacientes como mortos. E, no entanto, depois desse ponto, cerca de 30% dos pacientes de Marinaro sobrevivem. "Se você triplicasse a sobrevida com um medicamento contra o câncer, as pessoas não acreditariam", disse ele, enquanto uma bomba de ECMO zumbia e passava água por seu modelo de PVC. "Mas nós triplicamos a sobrevida de uma parada cardíaca fora do hospital. Na medicina, triplicar a sobrevida é algo inédito!" Ele me contou sobre um paciente que recebeu RCP por três horas e foi levado a dois hospitais diferentes, antes que a equipe de Marinaro o colocasse na ECMO. "Esse cara saiu do hospital", disse ele. Recentemente, ele tratou uma menina de 16 anos chamada Sophia, que sofreu uma parada cardíaca no banheiro de uma Starbucks. Ela recebeu RCP por uma hora e nove minutos. "Eles estavam prestes a desistir", ele me disse. A mãe dela, uma médica chamada Angelina Villas-Adams, esperou na sala de emergência com o marido enquanto a equipe trabalhava na filha deles; um capelão apareceu. Os protocolos da própria Marinaro recomendam que não se utilize a ECMO após mais de uma hora de RCP, pois a recuperação neurológica se torna muito improvável. Mas então um paramédico disse que a tinha visto se mexer. Sophia havia apresentado algo chamado consciência induzida por RCP; as compressões torácicas estavam fazendo circular sangue suficiente para que ela movesse um braço. Marinaro abriu uma exceção e colocou Sophia na ECMO. Mais tarde, na UTI, alguém sussurrou "Aperte minha mão" em seu ouvido, e ela o fez. Estávamos pensando: "Será que ela vai acordar?", disse-me seu pai, Buddy. A bomba de ECMO, disse ele, lembrava uma máquina de fazer raspadinha de gelo vermelha. Depois de dois dias, o coração de Sophia se recuperou e ela saiu da ECMO. Então ela falou: "Meus dedos dos pés estão esmagados". As botas pneumáticas, destinadas a evitar coágulos sanguíneos, estavam apertando seus pés. "A ECMO salvou minha vida", disse Sophia quando a encontrei em Albuquerque, vários meses depois. "Eu sobrevivi quando deveria ter morrido", disse ela. "Deveríamos estar fazendo isso muito mais", disse Marinaro. Ele acha que a ECMO deveria estar em toda parte. "Como tornar a ECMO disponível para todos, para que você possa morrer em qualquer lugar, a qualquer momento, e alguém possa salvá-lo?" Na parte de trás de uma ambulância, ele me mostrou um circuito de ECMO com manivela manual que ele e outro médico, Darren Braude, criaram para paradas cardíacas no campo. "Nós fazemos a dança da manivela!", disse ele, sorrindo. Curvado na parte de trás da ambulância, girei a manivela. Ela gemia como um carro Hot Wheels. A configuração era surpreendentemente simples. Quando saímos da ambulância, Marinaro sugeriu enviar alguns desses circuitos para o hospital rural onde trabalho. Pensei em todos os pacientes que poderíamos salvar. Há cerca de uma década, um adolescente que não podia ser salvo foi internado em um hospital da Nova Inglaterra. Assim como Shania Arms, ele tinha fibrose cística. Um transplante de pulmão anterior estava falhando, e sua única esperança era outro transplante. Ele foi colocado em ECMO enquanto esperava. Dois meses depois, os médicos descobriram que ele havia desenvolvido um câncer incurável. Agora não havia como ele sair da UTI. Seus pulmões não tinham mais recuperação e o câncer o tornava inelegível para transplante. Ele estava preso em uma ponte para lugar nenhum.
Alguns membros da equipe médica achavam que a ECMO deveria ser interrompida. O transplante não era mais possível, e as máquinas de ECMO eram escassas. Enquanto o paciente estivesse na máquina, ela não poderia ser usada para salvar outra pessoa. Também é caro; de acordo com um estudo de 2023, a taxa média de hospitalização para pacientes com COVID em ECMO foi de cerca de oitocentos e setenta mil dólares, e os casos prolongados podem ultrapassar vários milhões. Esses recursos podem ser necessários para ajudar outros pacientes, e o menino não poderia viver na UTI indefinidamente. Mas outros membros da equipe discordaram. "Ele estava trocando mensagens de texto com os amigos", disse Robert Truog, pediatra e bioeticista que participou do caso e escreveu sobre ele no The Lancet. Ele estava passando tempo com a família e fazendo o dever de casa on-line. Como podia ficar acordado com a ECMO, ele ainda podia se envolver em atividades significativas. Situações como essa representam um "profundo dilema ético", disse-me Raghu Seethala, intensivista e especialista em ECMO do Brigham and Women's Hospital. "A tecnologia está à frente da ética", disse outro especialista. De acordo com Truog, os defensores da continuidade do tratamento apontaram que os pacientes são rotineiramente mantidos vivos em aparelhos como ventiladores ou por meio de tratamentos como a diálise, sem expectativa de recuperação. Por que a ECMO é diferente? "É diferente", me disse Kenneth Prager, diretor de ética clínica do Centro Médico Irving da Universidade de Columbia. Os pacientes podem, às vezes, utilizar essas máquinas em casa, enquanto a ECMO requer uma UTI. Além disso, os pacientes de UTI com insuficiência grave de órgãos raramente estão totalmente conscientes; com a ECMO, "você pode ter um paciente acordado e alerta, andando, andando de bicicleta ergométrica e, ainda assim, o coração e os pulmões são incapazes de sustentar a vida", disse Prager. "O contraste é totalmente incomparável com qualquer outra tecnologia." É essa semelhança impressionante com a vida, quando um paciente está no limiar da morte, que torna a situação criada pela ECMO tão surpreendente e difícil. É uma "forma precária de existência, que às vezes levanta questões sobre nossas definições tradicionais de vida e morte", escreveram Prager e seus colegas em um artigo publicado na revista Circulation. Usando a ECMO, um paciente com insuficiência grave de órgãos pode parecer bem e se sentir bem, mas sem recuperação ou transplante, ele não pode deixar a UTI e não tem esperança de sobrevivência a longo prazo. A conversa sobre quando parar envolve os próprios pacientes, que devem pensar em escolher o momento de sua própria morte. Seja quem for que decida, é como dar uma sentença, disse Prager. No final, a equipe responsável pelo tratamento do adolescente apresentou um compromisso à família. Em vez de retirar ativamente a ECMO - literalmente, colocar um interruptor para "desligar" - eles não manteriam mais a máquina. Quando o oxigenador começou a se desgastar, eles optaram por não trocar por um substituto. Um dia, quando o oxigenador falhou, o menino perdeu a consciência e morreu. Em outros casos, entretanto, os pacientes se recusaram a considerar qualquer redução de escala em seus cuidados. Esses pacientes viveram na UTI pelo tempo que puderam, até que uma complicação os matou. Aqui, também, a ECMO introduz novas complexidades. Um ventilador, ou diálise, evita uma cascata de deterioração que acaba causando parada cardíaca - a última via comum de morte. E, uma vez que a parada cardíaca ocorre, geralmente é difícil revertê-la. Mas a ECMO pode assumir completamente o trabalho do coração, interrompendo a progressão usual em direção à morte. A parada cardíaca perde o sentido. Parece quase certo que, quanto mais usarmos a ECMO para evitar a morte, mais pessoas acabarão vivendo em UTIs, mantidas vivas apenas pelas máquinas. "Esse já é um grande problema", disse-me Prager. "E ele só vai piorar." Em parte, isso se deve ao fato de os médicos não conseguirem prever perfeitamente quem se beneficiará da ECMO ou dos tratamentos que ela possibilita. "Colocamos as pessoas na ECMO acreditando que ela será uma ponte para alguma coisa, e isso acaba não acontecendo", disse Prager, talvez porque elas não consigam se recuperar sozinhas ou não sejam elegíveis para um transplante. As expectativas dos pacientes também podem desempenhar um papel importante. Seethala me contou sobre uma ação judicial movida contra uma equipe de médicos por não oferecer acesso à ECMO: em 2019, um júri considerou os médicos responsáveis por não transferir uma mulher do Bronx para um centro de ECMO. (Depois que uma apelação em 2021 reduziu seu acordo, ela recebeu dez milhões de dólares por dor e sofrimento passados e futuros). Outros observadores expressaram preocupação com o fato de que os pacientes podem vir a esperar a ECMO como um tratamento padrão para qualquer parada cardíaca, como a RCP é agora. Blair Bigham, outro médico de emergência e intensivista, contou-me que, durante a pandemia, viu muitos hospitais adquirirem máquinas de ECMO e depois as utilizarem indiscriminadamente em pacientes com pouca probabilidade de recuperação. "Assim que você tiver o botão de ECMO, você vai usá-lo", ele me disse. Jessica Zitter, a médica de cuidados paliativos, chama essa tendência de sempre adicionar outra máquina, ou outro medicamento, de esteira rolante do fim da vida. "Estamos sempre tentando fazer mais e mais e mais com as pessoas, quando talvez não devêssemos", disse Bigham. "O problema geral aqui é que temos esse medo de deixar as pessoas morrerem", explicou. Em março de 2023, visitei o laboratório de Robert Barlett, que se mudou em 1980 da U.C. Irvine, onde ele originalmente desenvolveu a ECMO na década de 1970, para a Universidade de Michigan. Ann Arbor estava cinza, mas o laboratório estava iluminado e cheio de atividade. Bartlett, que agora tem 84 anos, estava em casa, recuperando-se de um procedimento médico. Ele ligou durante a minha visita para me contar no que estavam trabalhando. Um dos focos é encontrar maneiras de tirar os pacientes que estão em ECMO da UTI ou até mesmo do hospital. "Eles precisam ser capazes de voltar para casa com esses dispositivos", disse Bartlett. Para isso, o laboratório está tentando criar um mini-ECMO, um tipo de pulmão artificial vestível. No final do corredor da sala de conferências onde conversei com Bartlett, uma estagiária de pesquisa chamada Gabriele Seilo estava sentada em uma bancada de laboratório, enrolando discos ranhurados com um tecido plástico transparente. As fibras plásticas contêm microporos, o que lhes permite agir como capilares pulmonares, que introduzem oxigênio na corrente sanguínea em quantidades precisas. "Isso facilita a troca de gases", explicou Seilo, virando-se de sua bancada. Ao lado dele, um compartimento continha protótipos de diferentes tamanhos. A ideia é que o disco seja usado fora do corpo, conectado a um tanque de oxigênio portátil. O sangue pode fluir através do dispositivo de forma passiva, de modo que ele não precisa de uma bomba. Em outra sala, o laboratório estava desenvolvendo uma membrana de ECMO que secreta óxido nítrico. Os oxigenadores de ECMO tendem a criar coágulos sanguíneos, e os pacientes precisam de medicamentos para evitar isso. Mas esses medicamentos podem, por sua vez, causar sangramentos perigosos. "O sangramento e a coagulação são os maiores problemas da ECMO", disse Bartlett por telefone. O óxido nítrico impede a formação de coágulos, mas não causa sangramento. Isso poderia tornar a ECMO muito mais segura e potencialmente adequada para uso fora do hospital. No final do corredor, encontrei o que talvez seja a inovação mais surpreendente do laboratório. Alvaro Rojas-Peña, co-diretor do laboratório, levou-me a uma antessala que ficava ao lado de uma sala de cirurgia. "Veja isso", disse Rojas-Peña. Ele apontou para um pedestal no meio da sala. Eu me inclinei para frente. No pedestal, havia um coração isolado e pulsante. Cânulas o conectavam a um circuito especial de ECMO. O coração, que havia sido retirado de um animal de pesquisa, estava envolto em um saco plástico para evitar a ressecamento; ele se contorcia e se retorcia a cada batida, vivo. Rojas-Peña me mostrou um iPad, no qual um software monitorava o coração usando quase uma dúzia de parâmetros fisiológicos. Por incrível que pareça, o coração estava gerando uma pressão arterial normal. Com a ajuda da ECMO, o coração foi mantido vivo e bombeando, fora de qualquer corpo, por quase vinte e quatro horas. Em poucos minutos, ele seria transplantado em um animal na sala de cirurgia ao lado. Receber um transplante de órgão é como ganhar várias loterias ao mesmo tempo. Um doador deve ser saudável o suficiente para que a função do órgão seja preservada e estar próximo geograficamente o bastante para que o tempo de transporte seja minimizado; o órgão deve ser compatível com o tipo sanguíneo do receptor e este não pode estar doente demais para sobreviver à operação. Todas essas condições devem estar alinhadas no momento em que um órgão se torna disponível; todos os dias, dezessete pessoas morrem nos EUA porque alguma parte dessa equação falha ou simplesmente porque os órgãos não podem ser encontrados. "Setenta por cento dos órgãos de doadores são rejeitados", disse-me Rojas-Peña, porque alguma coisa não está no ponto ideal. As implicações da aplicação da ECMO ao transplante de órgãos podem ser profundas. Se os órgãos pudessem ser mantidos vivos de forma confiável fora do corpo, eles poderiam ser enviados a um banco de órgãos centralizado. O tempo de transporte não seria mais um fator. Os órgãos poderiam ser perfeitamente combinados com os receptores, e os órgãos marginais poderiam ser ajustados fora do corpo com medicamentos. As listas de espera poderiam desaparecer. "O transplante não seria mais uma cirurgia de emergência", disse Rojas-Peña. Ele poderia ser planejado, como qualquer outra operação. Em Toronto, um grupo já começou a fazer isso com pulmões humanos, o que lhes permitiu utilizar cerca de setenta por cento dos pulmões doados para transplante, em comparação com a média de cerca de vinte por cento nos Estados Unidos. Um dos riscos da ECMO, da forma como é empregada atualmente, é que ela deixará os pacientes presos em uma ponte para lugar nenhum. Mas a própria tecnologia pode ser uma ponte para um lugar novo. Em última análise, sugeriu Bartlett, ela pode ter usos além do transplante. "Poderíamos ter órgãos que fizessem coisas", disse ele, como fabricar fatores de coagulação ou glóbulos vermelhos. "Poderíamos retirar um fígado cheio de câncer, tratá-lo e devolvê-lo ao paciente", ele me disse. "Achamos que todas essas coisas podem ser possíveis." ♦ Apresentação do Autor: Os textos de Clayton abrangem cantos estranhos e fascinantes da ciência e da saúde, com foco no potencial terapêutico das drogas ilícitas, na interseção entre as mudanças climáticas e a saúde humana e na interdependência do mundo ao nosso redor e dentro de nós. Ele é formado em medicina pela Universidade de Columbia e é um médico de emergência treinado em Harvard. Ele vive e trabalha no Novo México e é representado por Katie Cacouris, da The Wylie Agency. Comentários do tradutor: No Brasil o ECMO ainda é uma terapia excepcional. Sua difusão no país não pode ser comparada aos casos apresentados por Clayton Dalton neste ensaio. Não obstante, como acontece em outras terapias, mercados e tendências no campo da Saúde, podemos esperar um avanço destas terapias no caso brasileiro. O último estudo a ser realizado pelo governo federal no ambito do SUS foi publicado em Maio de 2021, ainda no contexto da pandemia de COVID-19. O “Relatório de Recomendação” produzido pela Conitec (Coordenação de Monitoramento e Avaliação de Tecnologias em Saúde do Ministério da Saúde) concluiu que “A relação de custo-utilidade da implementação da ECMO no Brasil é aceitável. Inicialmente ocorreu um declínio do custo devido à redução do tempo de permanência na UTI, mas com o ganho experiência, a melhora da sobrevida pode aumentar o custo destes pacientes”. No âmbito dos interesses e discussões feitas no grupo Passagens o texto nos instiga e levanta questões sobre como as decisões éticas da ECMO são solucionadas e padronizadas, em certa medida os debates trazidos por Clayton poderão definir políticas de cuidados paliativos, as formas de gestão dessa nova fase da vida, que agora é mais além do que nascimento, vida e morte. A ECMO insere nesta equação o estado da sobrevida, uma experiência que tem se ampliado conforme avançamos as fronteiras tecnológicas e, com elas, as formas de gestão da vida e da morte na biomedicina moderna. Recomendações bibliográficas Copelotti, L. (2023). Os fins do cuidado: processos de tomada de decisão, suportes avançados de vida e cuidados paliativos. Anuário Antropológico, 48(1). Disponível gratuitamente em: <https://doi.org/10.4000/aa.10589> Engelke, M. (2019). The anthropology of death revisited. Annual Review of Anthropology, 48, 29-44.. Disponível gratuitamente em <https://doi.org/10.1146/annurev-anthro-102218-011420> Marini, Marisol. A atuação da imaginação no desenvolvimento de Corações Artificiais: por uma compreensão da corporificação e partilha da imaginação. Mana, v. 27, p. e272207, 2021. Simpson, Bob. (2018) 2023. “Death”. In The Open Encyclopedia of Anthropology, edited by Felix Stein. Facsimile of the first edition in The Cambridge Encyclopedia of Anthropology. Online: http://doi.org/10.29164/18death Acaba de ser publicado o dossiê "Religiões e cidades brasileiras, caminhos cruzados", na revista Anuário Antropológico, organizado por Marcella Araujo, Marcelo Moura Mello e Rodrigo Toniol. O dossiê reune 7 artigos, escritos por 11 autores. Acesse aqui a apresentação do dossiê e neste link navegue por todos os textos.
O Passagens receberá, no dia 24 de Maio, Rodrigo Charafeddine Bulamah. Professor Adjunto do Departamento de Antropologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Foi pesquisador FAPESP de pós-doutorado no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Unifesp (2019-2023) e possui doutorado em Antropologia Social e Etnologia (Universidade Estadual de Campinas e École des Hautes Études en Sciences Sociales, 2018). É pesquisador associado ao CEMI (Unicamp) e ao ResiduaLab (UERJ). Em 2021, recebeu o Prêmio Jovem Pesquisador de Publicação da Société des Américanistes por sua tese de doutorado intitulada "Ruínas circulares: vida e história no norte do Haiti", que será publicada em livro pela Editora Papéis Selvagens.
Rodrigo nos apresentará sua pesquisa mais recente que explora a vida tecnopolítica e afetiva do carvão vegetal no Haiti e suas conexões com práticas ecológicas regenerativas. 📍Instituto de Filosofia e Ciências Sociais-IFCS. Sala 417 às 14h Marcella Araujo, Marcelo Moura Mello e Rodrigo Toniol organizaram o dossiê Religiões e cidades brasileiras, caminhos cruzados na revista Anuário Antropológico. A publicação integral do dossiê será concluída na próxima semana, mas já é possível conferir alguns dos textos que o compõem. Acesse aqui.
5/4/2024 0 Comentários Biblioteca NacionalHá alguns dias, a equipe do Passagens atravessou a Praça Floriano, no Centro da cidade, para prestar uma visita à imponente Fundação Biblioteca Nacional. Prestes a completar 214 anos de existência em outubro deste ano, a instituição reúne, restaura, preserva e disponibiliza ao público uma vastidão de periódicos, cartas, mapas, obras literárias, plantas e outros registros que proliferam-se aos milhões. Ao nos aventurarmos pelos corredores ricamente ornamentados da construção sob as instruções de uma guia, pudemos espiar como alguns destes registros transitavam das estantes às mãos de visitantes interessados. Ao cabo do roteiro de visitação, por sorte, esbarramos ainda em uma exposição da casa, “Uma janela para o Armazém de Periódicos”. Como capturamos nas fotografias acima, as publicações seriadas como as revistas de quadrinhos, os anuários ou jornais, por exemplo, é que tornaram-se protagonistas da iniciativa. O Passagens agradece à equipe da Fundação Biblioteca Nacional pela recepção cuidadosa e recomenda que também o leitor se aventure em uma excursão gratuita. A instituição está de portas abertas de segunda à sexta para visitas com guias, consultas ao acervo ou passeios pelas exposições. Fonte: Portal da Fundação Biblioteca Nacional 5/4/2024 0 Comentários São Vicente de ItabiritoA Igreja do Morro de São Vicente de Itabirito, em Minas Gerais, só podia ser alcançada sobre o dorso de um cavalo. Quando o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) decidiu inventariá-la, então, encontrou-a no coração de um “roçado” de poucos casebres e lavradores. Era 1944. Erguida no século XVIII, a Igreja de São Vicente exibia um aspecto bastante “simples”, sendo repleta de ex-votos mas vazia de “imagens e móveis”. O técnico do SPHAN responsável pelo seu inventário relatou que estas peças teriam sido levadas por “colecionadores”, “ambulantes” ou moradores do local, agora convertidos em “verdadeiros negociantes [das] antiguidades” da Igreja de São Vicente.
Mas o templo estava ruindo. Em 1953, seu tombamento foi formalizado com promessas de restauração: seu valor histórico e artístico justificaria as obras, compreendeu o SPHAN. Contudo, se as reformas foram realizadas, não foram suficientes para assegurar a salvação da Igreja de São Vicente. Em 1960, a construção já havia ido abaixo e sido substituída por outra — que, dentro de alguns anos, também seria entregue à decadência —, erguida sobre suas ruínas. Foram décadas até que o SPHAN descobrisse sobre a empreitada e cancelasse, de pronto, o tombamento de 1953. A justificativa do órgão foi a “ausência de materialidade [da antiga Igreja de São Vicente] decorrente do seu perecimento”. Hoje, em Itabirito, restam as ruínas dos templos perdidos. Ainda se distingue o contorno de uma fachada contra a vegetação dominante, mas não se sabe o destino das imagens, pinturas e demais peças do seu acervo. Fonte: Arquivo Central do IPHAN, proc. 469-T-1953 (Igreja de São Vicente). Quando as Igrejas e o Convento do Carmo de Mogi das Cruzes foram tombadas pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), em 1967, já se falava na sua demolição. Os protestos foram imediatos quando a medida foi anunciada à Angelino Wissink e à Hilarião Remmerswaal, eclesiástico da Ordem Carmelita. Segundo os carmelitas, nada de “antigo nem de artístico” restava às Igrejas e ao Convento do Carmo. As reformas sofridas pelas construções haviam as deixado “mutiladas”, argumentaram, e já eram compatíveis com as necessidades das “almas confiadas aos cuidados” da ordem. Os carmelitas definiram as construções erguidas entre os séculos XVII e XVIII como “monumentos mortos” de um “peso tremendo” para a cidade. Era necessário, portanto, substituí-las por um templo maior, “moderno” e recheado de “inovações”, compatível com o “progresso” de Mogi. Angelino e Hilarião não estavam sozinhos nesta defesa: ainda em 1967, o SPHAN recebeu 6.184 assinaturas de moradores e eclesiásticos pelo cancelamento do tombamento das Igrejas e do Convento do Carmo. A resposta furiosa do órgão partiu de Lucio Costa, diretor da sua Divisão de Estudos e Tombamentos. Questionando como se poderia, em “sã consciência”, condenar as Igrejas e o Convento do Carmo à “pena de morte”, Lucio relembrou o valor histórico e artístico das construções. As vontades dos “fiéis (ou infiéis)” de Mogi, escreveu, não poderiam justificar a demolição das “testemunhas” das origens e da “tradição” da cidade. Que os carmelitas construíssem seu novo templo em outro local, se quisessem. O Conselho Consultivo do IPHAN determinou, por unanimidade, que as Igrejas e o Convento do Carmo fossem tombadas compulsoriamente. Em 1982, outro tombamento veio do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (CONDEPHAAT). Hoje, as Igrejas e o Convento do Carmo podem ser visitadas no mesmo local que sempre ocuparam, mas com a adição do seu Museu das Igrejas do Carmo, inaugurado em 2005. Fonte: Arquivo Central do IPHAN, proc. 0790-T-67 (Convento e Igreja da Ordem Primeira do Carmo e Igreja da Ordem Terceira do Carmo). É de se imaginar que quando o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) anunciou o tombamento da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, de Porto Alegre, não antecipou a resposta que receberia da Arquidiocese da cidade: nas palavras do vigário-geral Leopoldo Neis, a construção não seria um “monumento artístico” condizente com o estatuto de patrimônio, estando ainda deteriorada e “condenada pelos arquitetos”. A patrimonialização representava, ademais, um obstáculo para os planos da Arquidiocese: que a Igreja do Rosário fosse demolida e substituída por um novo templo. Em 1938, o SPHAN repeliu esses protestos e prosseguiu, compulsoriamente, com o tombamento da Igreja do Rosário. A Arquidiocese de Porto Alegre reagiu em 1940 e acionou o “feliz, fecundo e aplaudido” governo de Getúlio Vargas, que lhe concedeu uma “licença” para “reformar e reconstruir” o templo após suspender seu tombamento. Em resposta, o diretor do SPHAN, Rodrigo M. F. de Andrade, suplicou que a patrimonialização da Igreja do Rosário não fosse “cassada” como ocorrera com a cidade de São João Marcos — caso carioca já discutido neste perfil. Saindo em defesa ferrenha da Igreja do Rosário, Rodrigo acusou a “desorganização progressiva” das políticas de proteção ao patrimônio do país. Vargas voltou atrás. Em uma comunicação que Leopoldo considerou “desoladora”, o presidente determinou que a Igreja do Rosário fosse preservada “integralmente” e solicitou “as medidas necessárias à [sua] utilização atual”. Não obstante, a Arquidiocese de Porto Alegre insistiu que apenas a morte restava ao templo que “jamais” seria uma “obra de arte”. Se a metrópole de Porto Alegre pretendia alcançar o “progresso cultural”, argumentou o arcebispo João Becker, deveria fazê-lo através de medidas como esta. Outra reviravolta: João e a Arquidiocese de Porto Alegre foram atendidos quando, em 1941, o tombamento da Igreja do Rosário foi cancelado sob a rubrica de Vargas por “motivos de interesse público”. Foi-se o templo. Fonte: Arquivo Central do IPHAN, proc. 178-T-39 (Igreja de Nossa Senhora do Rosário) 5/4/2024 0 Comentários Igreja sacrificadaO sacrifício da Igreja de Bom Jesus de Matosinhos, em Minas Gerais, foi defendido pelo seu próprio pároco. Como atestado pelo vai-e-vem de ofícios e telegramas entre as figuras eclesiásticas da cidade e a então Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (DPHAN) durante as décadas de 1960 e 1970, o padre Jacinto Lovato pretendia demolir a construção mencionada no tombamento do Conjunto Arquitetônico e Urbanístico de São João del Rei “para, em seu lugar, erguer outra mais espaçosa”. Logo, Jacinto não estaria sozinho nessa pretensão. Em 1961, o bispo da Diocese de São João del Rei, Delfim Ribeiro Guedes, solicitou ao DPHAN que a Igreja dos Matosinhos fosse ampliada para “servir convenientemente ao culto Divino”. A população da cidade crescia, sugeriu o bispo, e também deveria o templo. A solicitação de Delfim não foi atendida. Ao mesmo tempo, o estado da Igreja de Bom Jesus de Matosinhos se deteriorava. Erguida em 1774, pedia com urgência por serviços de manutenção e de reparo. Milhares e milhares de cruzeiros seriam necessários para que a construção recuperasse seu fulgor — orçamento que o DPHAN compreendeu como inviável. Passaram-se alguns anos e, finalmente, no início da década de 1970, os planos para a demolição da deteriorada Igreja de Matosinhos tornaram-se concretos. Diante dos protestos do DPHAN, os responsáveis — Jacinto, agora apoiado por Delfim e pela Diocese da cidade — prometeram um novo templo “grandioso”, embelezador dos arredores e “sóbrio, mas artístico”. Seguiram adiante, e assim nasceu, no mesmo terreno de sua antecessora, a Paróquia do Santuário Diocesano do Senhor Bom Jesus de Matosinhos. Um fragmento da saudosa Igreja de Matosinhos ainda pode ser encontrado na cidade: uma portada, vendida após a demolição do templo, foi recuperada após uma marcante mobilização jurídico-popular. O produto do “resgate” está em exposição no Museu de Arte Sacra de São João del Rei. Fonte: Arquivo Central do IPHAN, proc. 68-T-38 (Conjunto Arquitetônico e Urbanístico de São João del Rei). |